A entrevista mais interessante que fiz em minha carreira

Atualizado em 2 de janeiro de 2013 às 20:14

Quando ouvi, na década de 80, a líder sandinista Nora Astorga percebi que jamais esqueceria

UM AMIGO, Marcelo, me avisa que a pergunta que fiz a Paul McCartney na entrevista em que ele lançou o cd e dvd Good Evening New York City foi parar na Wikipedia. Quis saber de Paul, como já escrevi, a música pela qual ele gostaria de ser lembrado pela posteridade. Ele pensou alguns momentos e respondeu Maybe I’m Amazed, uma balada agridoce feita no começo dos anos 70 pouco depois do fim dos Beatles. No espaço dedicado a Maybe I’m Amazed na Wikipedia, está registrado que esta é a música pela qual Paul desejaria que o recordassem, e é feita uma conexão para o texto que escrevi no Diário do Centro do Mundo.

Um outro amigo, Mental, me pergunta, inspirado na questão que coloquei a Paul, qual a entrevista que mais gostei de fazer em minha carreira. É uma resposta relativamente fácil. Em meados dos anos 80, numa curta estada na ISTOÉ quando eu era ainda quase um garoto, entrevistei Nora Astorga, então diplomata da Nicarágua sob o governo sandinista. Cosmopolita, com passagens pelos Estados Unidos e pela Europa nos tempos de estudante, ela viera ao Brasil para uma reunião em Brasília, e tive a oportunidade de conversar, olho no olho, com uma personalidade que me fascinava fazia tempo. Bonita, culta, sofisticada, nascida em uma família rica, advogada da elite nicaraguense durante os anos do governo do general Anastacio Somoza, Nora Astorga tinha uma história sensacional. Era a Judite da Nicarágua. Como a heroína israelita bíblica que atrai o comandante inimigo para um encontro sexual e lhe corta a cabeça depois de fazê-lo beber vinho em grande dose, Nora Astorga, em 1978, armara uma emboscada amorosa para um general somozista, apelidado El Perro pelo seu retrospecto. Convidara-o para uma noite de amor em seu apartamento em Manágua. Quando o general bateu à porta, encontrou não sexo com a bela señora e sim a morte pelas mãos de três militantes sandinistas que o esperavam. Nora, depois daquela noite, rompeu com a vida dupla que levava e desapareceu na clandestinidade, de onde só sairia com a vitória do movimento sandinista, em 1979. Só aí reviu seus quatro filhos pequenos, dois de cada casamento.

Como diplomata da Nicarágua depois da vitória da Revolução Sandinista

Nora era uma das figuras mais importantes do novo governo sandinista. Seu passado cobrava-lhe um preço não apenas na consciência e na saúde, como eu perceberia na conversa, mas também na carreira. Indicada embaixadora da Nicarágua em Washington, o governo americano vetou seu nome por causa da noite em que El Perro – O Cão, em espanhol – foi assassinado. Acabou como representante da Nicarágua na ONU. Fui encontrá-la no quarto do hotel em que ela se hospedara. Estava apreensivo, muito mais do que em duas outras entrevistas que fizera naquela época: no Uruguai, Obdulio Varella, o combativo capitão da seleção uruguaia campeã do mundo em 1950 em pleno Maracanã, e na Argentina Jorge Luiz Borges, o grande escritor argentino. Como seria ela pessoalmente? Como lidaria com a morte do general? Não era, esta última, uma pergunta fácil de fazer, mas eu não podia fugir dela, ainda que a conversa terminasse ali.

ENTREVISTAS boas ou ao menos decentes não escapam de questões ásperas. As consequências são imprevisíveis. Uma vez uma entrevista que a Playboy americana fazia com Robert de Niro, que estourara em Taxi Driver havia pouco tempo, foi subitamente interrompida quando ele, incomodado com uma questão, atirou o gravador na parede. Mais tarde, serenados os ânimos e obtido um novo gravador, a entrevista foi retomada. A Playboy americana elevou as entrevistas a um estado de arte jornalística, e alcançou um patamar de grandeza nesse capítulo jamais igualado. Conversas longas, em várias sessões, e depois editadas com mestria. No Brasil, as conversas que o Pasquim publicou foram o que se fez de mais interessante em entrevista na mídia nacional, uma reprodução primorosa de um encontro no bar em que não faltava, longe disso, cachaça, ou uísque. Isoladamente, em minha vida como leitor, o melhor trabalho que vi foi o do repórter Getúlio Bittencourt, da Folha.

No final dos anos 70, Getúlio, baixinho, largo de compleição, cabelos encaralacolados, mais tarde também conhecido pelo talento como astrólogo, conversou com o general que o presidente Ernesto Geisel escolhera para sucedê-lo, João Baptista Figueiredo. Não foi permitido a Getúlio, morto em junho passado aos 57 anos, anotar nada, e muito menos gravar. Sua memória extraordinária resolveu os problemas. Pouco tempo depois do encontro, a entrevista estava publicada, um clássico instantâneo. “Prefiro cheiro de cavalo a cheiro de gente”, dissera Figueiredo, e essa frase haveria de ser usada contra ele ao longo de todo o seu mandato de último presidente-general. Estar preparado é a recomendação essencial que todo editor faz a um repórter que está no começo. Nos anos 80, o jornalista Elio Gaspari gostava de contar aos jovens jornalistas, entre os quais eu, uma história exemplar. Geisel era presidente da Petrobras e era avesso ao contato com jornalistas. Uma rara vez, abriu uma exceção e concordou em dar uma entrevista. A primeira pergunta que o repórter fez foi a última. “Qual a produção da Petrobras?” Geisel, corretamente, entendeu que seu entrevistador estava despreparado.

Nora, ao contrário de muitas outras personalidades que eu entrevistaria nos anos seguintes, não impôs condições para a conversa. Ela me recebeu com a delicadeza de uma mulher educada. Tinha os cabelos curtos, e estava vestida com elegância sóbria. Era alta e magra, mas não excessivamente. Me ofereceu uma cadeira, e começamos a conversa. Assim que pude, quebrado o gelo, perguntei a ela quais eram suas lembranças da jornada em que atraíra um homem para a morte. “A revolução impõe certas dores”, disse ela num espanhol de primeira aluna da classe. Tinha os olhos levemente marejados, mas em nenhum momento hesitou ao falar do episódio e a voz jamais fraquejou. Tampouco se colocou na defesa. Era uma guerra, e ela estava preparada para morrer desde que aderiu ao movimento sandinista. Ela lembrou, na conversa, um menino que fazia ‘correio’ para os sandinistas, levava e trazia notícias, e que foi morto pouco antes da derrubada de Somoza. Nesse instante vi que seus olhos voaram longe.

Saí do hotel certo de que vivera um dos momentos mais interessantes que o jornalismo me reservaria, e passados mais de 20 anos vejo que estava certo. Entrevistei nos anos seguintes, para publicar ou não, altos políticos, grandes empresários e executivos, escritores premiados, e não me lembro de ter experimento o frêmito que antecedeu aquela conversa. Nora, a Judite sandinista, morreria pouco tempo depois, aos 39 anos, de câncer. Não sei o quanto o sangue de El Perro pode ter cobrado na saúde de Nora Astorga, mas eu não me surpreenderia se a resposta fosse muito.

NÃO TENHO o costume de reler o que escrevi. No começo da carreira, como todo principiante, recortava todos os meus escritos e os guardava numa pasta. Até laudas de textos meus mexidos por jornalistas como José Roberto Guzzo e Elio Gaspari foram para a pasta. Depois, à medida que o cinismo foi tomando conta do repórter sonhador, a pasta foi ficando de lado. Cada vez menos a abria e a alimentava ainda menos, até o momento em que ela simplesmente sumiu de minha visão e de meu interesse. Tentei achar no Google a entrevista com Nora Astorga, mas não a encontrei. Presumo que não tenha sido digitalizada. Às vezes, tenho vontade de rever a pasta de meus artigos até mais ou menos os 30, e o que está por trás desse desejo erradio são as três páginas que resultaram da conversa que tive com a advogada nicaraguense de olhos tristes que não viveu o  suficiente para ver depois da revolução, para repetir o grande verso de Augusto dos Anjos, o formidável enterro de sua quimera – o sonho de uma sociedade igualitária.