A consagração de Birdman

Atualizado em 25 de fevereiro de 2015 às 9:01
A invasão mexicana no cinema americano está completa
A invasão mexicana no cinema americano está completa

A invasão mexicana no cinema americano está completa. Depois de Guillermo Del Toro ser alçado ao posto de menino de ouro nerd (ele era o nome original pra dirigir a trilogia ‘O Hobbit’) e de Alfonso Cuarón ter conquistado todas as glórias que a indústria oferece com ‘Gravidade’, no ano passado, Alejandro González Iñárritu, a terceira cabeça do grupo – que mantém uma produtora em conjunto no México, a Cha Cha Cha Films – voa alto e consolida seu lugar nos Estados Unidos com ‘Birdman – ou a Inesperada Virtude da Ignorância’, e agora seus Oscars de Filme, Direção, Roteiro Original e Fotografia.

Iñárritu não é novo em Hollywood. Três anos depois de chamar atenção com seu primeiro longa, o magnífico ‘Amores Brutos’ (2000), ele já estava nos EUA, lançando ’21 gramas’, reconhecido pelos americanos como um dos grandes filmes daquele ano. Em 2006, seu ‘Babel’ foi indicado a 7 Oscars, incluindo Filme e Diretor, até então uma façanha inédita para um mexicano.

Mas se ’21 gramas’ e especialmente ‘Babel’ arrebataram os EUA, o diretor também recebeu críticas de que seus filmes apresentavam um crescente senso de pretensão e auto-importância. Ao mesmo tempo, sua colaboração com o escritor Guillermo Arriaga, parceiro na trilogia Amores-21-Babel e responsável pela arrojada e eventualmente desgastada estrutura de histórias paralelas contadas de forma não-linear, era dissolvida numa briga pública que chegou a banir Arriaga do Festival de Cannes.

Com outros parceiros, Iñárritu escreveu e filmou ‘Biutiful’ (2010), co-produção México/Espanha. Aqui, o cineasta tentou conciliar uma narrativa realista com uma temática mística – o filme traz o médium Uxbal (Javier Bardem) lidando com um câncer terminal.

Agora, em ‘Birdman’, ele equilibra realismo, surrealismo e metalinguagem num projeto original e raro de se ver em Hollywood.

– Alejandro, não há uma pessoa aqui que não vai aparecer pra trabalhar no seu próximo projeto – disse um emocionado Michael Keaton, ao vencer o Globo de Ouro de Ator em Musical/Comédia.

O filme segue Riggan Thomson (Keaton, brilhante, com a urgência de quem está no limite de perder a cabeça), um ator em decadência cuja grande realização foi ter vivido no cinema o herói dos quadrinhos Birdman – a semelhança da trajetória do personagem com a de Michael Keaton, o Batman do início dos anos 90, não é mera coincidência. Na busca por conseguir afirmação artística e reinventar sua carreira, Riggan está prestes a estrear uma peça na Broadway em que ele dirige, atua e adapta um conto de Raymond Carver.

Essa é a descrição simplista de um filme corajoso que, desde a sua primeira imagem, encaixa elementos de fantasia numa narrativa realista, e o faz de forma muito bem-sucedida, com o uso constante de metalinguagem e as intervenções do alter-ego do protagonista adicionando camadas e camadas de reflexão sobre o que está acontecendo na tela. No fim, os temas se desdobram, fala-se de arte, do ofício do ator e do artista, do papel do espectador, da necessidade humana de se fazer importante.

E consequentemente, sobra pra todo mundo: para os atores que vestem o manto vazio da celebridade Hollywoodiana e vem buscar reconhecimento artístico no teatro, para a crítica que com uma canetada de vaidade sepulta um trabalho colaborativo de meses, para o público que assiste à peça pensando em qual restaurante vai jantar depois, para a geração millenium preocupada com a moda da semana na internet. Tudo isso sem, necessariamente, com que os realizadores sejam excluídos deste processo de escrutínio. Afinal, a metalinguagem está lá o tempo todo, nos fazendo pensar sobre o que está sendo dito e como está sendo dito.

Conduzido pela sensacional fotografia de planos contínuos de Emmanuel Lubezki (segunda vitória consecutiva no Oscar, depois de vencer ano passado por ‘Gravidade’), que a montagem de Douglas Crise e Stephen Mirrione faz parecer uma única tomada, ‘Birdman’ se passa quase que por completo num teatro da Broadway, entre corredores, bastidores, camarins e palco. A trilha consiste unicamente de uma tensa levada de bateria composta por Antonio Sanchez. E num cinema que valoriza excessivamente as sequências de ação e efeitos especiais, Iñárritu entrega momentos cinemáticos esplêndidos quando Keaton caminha pela Times Square de cueca ou dá vazão às suas fantasias de Homem-Pássaro, e captura algumas das melhores cenas puramente dramáticas (leia-se: dois atores contracenando) dos últimos tempos no cinema americano, como a de Riggan com sua filha (Emma Stone), a de Riggan com a crítica (Lindsay Duncan) ou qualquer uma que envolva o personagem de Edward Norton (fenomenal).

Uma pena que, como de costume, haja menos espaço para as mulheres, apesar de Stone, Duncan, Naomi Watts, Amy Ryan e Andrea Riseborough trabalharem muito bem com o material que lhes foi dado.

Domingo, ‘Birdman’ foi o grande vencedor da noite. E ainda que eu, particularmente, seja descrente, pode dizer muito sobre o que há por vir no cinema americano o fato de vermos lançadas no mesmo ano – e louvadas com sucesso de público e crítica e reconhecimento da Academia – obras originais e inovadoras como ‘Birdman’, Boyhood’ (indicado a seis Oscars e vencedor na categoria Atriz Coadjuvante, para Patricia Arquette) e ainda ‘Whiplash’ (premiado nas categorias Edição, Mixagem de Som e Ator Coadjuvante, para JK Simmons).

E é curioso que, num tempo em que a premiação da Academia esteve repleta de olhos azuis, sem qualquer negro indicado em cinco das seis principais categorias do prêmio (John Legend e Common, negros, vencendo por ‘Glory’, música original do filme ‘Selma’), não só um latino tenha sido o grande vencedor da noite de Hollywood (pelo segundo ano consecutivo) como sejam os mexicanos Iñárritu e seus amigos Cuarón e Del Toro, alguns dos responsáveis pelo que de mais interessante o cinema americano produz na atualidade.