“A derrubada do decreto 8243 foi um tiro no pé”, diz ao DCM a cientista política Thamy Pogrebinschi

Atualizado em 4 de novembro de 2014 às 16:29
Thamy
Thamy

 

O decreto 8243 está provocando discussões entre os brasileiros desde maio deste ano, enfrentando forte oposição da mídia. Em outubro, não passou no Congresso. Para esclarecer mais pontos sobre o projeto, o DCM falou novamente com a cientista política e professora Thamy Pogrebinschi, que já nos concedeu entrevista anteriormente.

Thamy explicou que mecanismos participativos existem em países como os Estados Unidos e são uma tendência mundial, ao contrário do que dizem as pessoas que o tacham de “bolivariano”. A especialista também contou um pouco sobre sua pesquisa no WZB Social Science Center, em Berlim.

O que você acha que acontecerá com o decreto 8243 no Senado?

Acho que, apesar da presente mobilização social, o decreto será, com grande probabilidade, também sustado pelo Senado. O PT, o PCdoB e o PSOL estão isolados na defesa do PNPS. O governo não conta com o apoio do PMDB, que já manifestou oposição ao decreto. Acho que agora cabe depositar esperança no projeto apresentado pelo PSOL (PL 8048), que busca recriar a PNPS por lei.

Por que os opositores chamam o decreto de “bolivariano” ou “soviético”? 

Gostaria de achar que é por mera falta de conhecimento histórico ou incapacidade de análise conjuntural, mas, infelizmente, acho ainda que se trata de má-fé da imprensa misturada com certa histeria da direita. A participação popular no processo político decisório não foi algo “inventado” pela União Soviética ou pela Venezuela.

Na origem da democracia, na Grécia antiga, as decisões eram tomadas diretamente pelo povo reunido na ágora (uma forma de assembleia popular). Hoje, as chamadas “inovações democráticas”, que incluem o que chamamos no Brasil de mecanismos e instâncias participativas, são implementadas em praticamente todos os países do mundo e, em especial, nas democracias avançadas. As formas e desenhos institucionais existentes são muito diversos.

Na Dinamarca, por exemplo, são organizadas há muitos anos “conferências de consenso”,  que são de certo modo semelhantes às “conferências nacionais” realizadas no Brasil e regulamentadas pelo decreto 8243. Na Suíça realizam-se consultas populares há mais de dois séculos com uma frequência enorme para decidir desde pequenas questões urbanas locais até questões tributárias ou fiscais em nível federal.

Há outros exemplos?

Sim. Há também casos na Finlândia e em inúmeros outros países onde o parlamento permite que a legislação seja formulada por meio de crowdsourcing na internet. As chamadas “iniciativas cidadãs” existem em quase todos os países da Europa.

Na Alemanha, por exemplo, o governo de Stuttgart queria construir uma nova estação de trens e a decisão foi tomada por voto popular. O prefeito de Berlim queria fazer um empreendimento imobiliário numa área de lazer onde antigamente funcionava um aeroporto e sua proposta não apenas foi decidida diretamente pela população, como também uma “iniciativa popular” levou a votação um projeto alternativo, que proíbe futuros empreendimentos na área.

O decreto 8243 era um passo para que o Brasil caminhasse na direção que a maioria das grandes democracias mundiais está tomando. Sua sustação é um imenso retrocesso.

Como funcionam as assembleias nos EUA?

Em seu clássico livro “Democracia na América”, Alexis de Tocqueville já descreve nos Estados Unidos que visitou entre 1831 e 1832 uma pluralidade de conselhos compostos por cidadãos que decidiam sobre diversos temas, desde melhorias urbanas até o sistema de educação. Os chamados townhall meetings existem nos Estados Unidos desde o século XVII e possuem muitas semelhanças com os conselhos locais de políticas que existem no Brasil.

Na região da Nova Inglaterra, até hoje essas instâncias populares tomam decisões muito mais abrangentes e vinculantes do que os conselhos de políticas podem tomar no Brasil. Para além do nível local, uma forte tendência hoje em democracias bastante robustas é constituir “assembleias populares” ou “assembleias de cidadãos”, cujos participantes muitas vezes são selecionados inclusive de forma randômica para tomar decisões até mesmo sobre matéria constitucional, como foi feito recentemente na Irlanda e na Islândia.

No Canadá, uma assembleia de 160 cidadãos foi organizada pelo governo de British Columbia em 2004 para deliberar sobre a alteração do sistema eleitoral. Se o governo brasileiro propusesse esse formato para debater a reforma politica seria duramente repudiado. Porém, isso é o que vem fazendo algumas das mais avançadas democracias do mundo.

Por que barraram o decreto 8243, em sua opinião?

A sustação do decreto 8243 pela Câmara dos Deputados deu-se por razões políticas, misturando desinformação e má-fé. Desinformação, porque o decreto que institui a Política Nacional de Participação Social não é aquilo que o acusam. Má-fé, pois a imprensa sabe disso e uma simples leitura do decreto é suficiente para desmistificar o que se diz a respeito dele.

O decreto não cria praticamente nada de novo, ele regulamenta algo que já está em funcionamento desde a redemocratização do país, inclusive durante governos anteriores ao PT. De certo modo, o decreto busca colocar ordem na casa, articulando as diversas instâncias e mecanismos participativos existentes e conferindo-lhes algumas diretrizes organizatórias básicas, parte delas buscando assegurar publicidade, transparência, além de diversidade da participação da sociedade civil.

Um dos opositores públicos ao decreto é o jurista Ives Gandra, que afirma que o 8243 é inconstitucional. Por que você acha que ele diz isso?

Eu tendo a achar que o decreto não é inconstitucional, mas possivelmente a sua sustação pela Câmara dos Deputados talvez o seja. Apenas decretos que regulamentem leis e exorbitem seu caráter regulamentar podem ser sustados pelo Poder Legislativo. O decreto 8243 não exorbita as competências regulamentares do Executivo, ele organiza a administração e não cria gastos. Do ponto de vista substantivo, ele concretiza os princípios democráticos da Constituição de 1988. Já no parágrafo único de seu primeiro artigo a Constituição diz que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.

A eleição de representantes não é, portanto, a forma exclusiva de exercício da soberania popular prevista pelos constituintes. Diversos outros artigos da Constituição de 1988 dão os termos nos quais a chamada soberania popular pode ser exercida, além de referendo, plebiscito e iniciativa popular, no artigo 14.

A própria Constituição conferiu a autonomia municipal que implicou a criação de conselhos de políticas locais. É o caso, por exemplo, dos conselhos de saúde que, mesmo antes de o PT chegar ao Executivo em 2003, já existiam em mais de três mil municípios.

O que exatamente você está pesquisando em Berlim e por que você se preocupa com o decreto 8243?

Eu vim para a Alemanha fazer um pós-doutorado. Acabei fazendo dois, fui professora visitante na Universidade de Frankfurt e depois me estabeleci no WZB Social Science Center como pesquisadora, apesar de manter ainda minhas atividades no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ). Eu pesquiso justamente a efetividade de mecanismos e instâncias participativas e seu impacto nas instituições representativas.

A principal conclusão de minhas pesquisas é que mecanismos participativos, ao contrário do que se teme, tem o potencial de fortalecer a democracia representativa, além de tornar o Poder Legislativo mais responsivo. O meu principal objeto de estudo é o Brasil e especificamente as Conferências Nacionais de Políticas Públicas, uma das instâncias participativas regulamentadas pelo decreto 8243 e que existe desde 1941, tendo desde então contado com muitas dezenas de edições, inclusive durante o governo FHC, quando elas se expandiram consideravelmente.

Nos últimos anos realizei diversas pesquisas que demonstraram que o as Conferências Nacionais e o Congresso Nacional possuem uma agenda convergente. As propostas discutidas no Congresso que convergem com as recomendações das Conferências Nacionais tendem a ser apresentadas com mais frequência pelos próprios parlamentares do que pelo Executivo.

Tais propostas afinadas com as deliberações da sociedade civil são apresentadas por uma pluralidade de partidos e não apenas o PT. Isso mostra que o Executivo não instrumentaliza os mecanismos participativos para avançar as suas políticas. Ao contrário, instâncias participativas como as Conferências Nacionais podem conferir uma legitimidade maior ao Congresso Nacional. Daí que a sustação do Decreto 8243 pelos parlamentares é um tiro no próprio pé. Os resultados dessas pesquisas podem ser lidos em diversas línguas na internet.