Na Índia deixei meu coração

Atualizado em 21 de novembro de 2012 às 20:35
Uma jovem hindu fotografada por Steve McCurry
É difícil amar a Índia, disse Jean-Claude Carrière, um dos grandes roteiristas do cinema contemporâneo, autor de um livro em que expõe sua paixão por esse país distante e enigmático. Quarenta dias depois de percorrer mais de 10 mil quilômetros em território indiano, visitar cidades e vilas, conhecer uma parte de seus templos milenares e de sua modernidade caótica, pousar em ashrams de diferentes gurus e interagir com o seu povo em situações que, não raro, desafiam a lógica, peço licença para acrescentar outro detalhe à constatação do cineasta francês. É também difícil, muito difícil, não se deixar seduzir pela Índia. E mais difícil ainda esquecê-la.

Amando-a ou detestando-a – e as duas reações podem ocorrer simultaneamente -, voltamos de lá com um selo indelével aplicado à mente e ao coração, uma marca formatada por choques e êxtases que, de algum modo, nos faz refletir sobre o que jamais pensamos antes.

Mais que misteriosa e mística, a Índia é diversificada e contraditória. E essa predisposição para lidar com os opostos e a acolher tudo, tudo transmutando em seu caldeirão de regras escritas e ocultas, é a primeira causa de espanto para quem chega trazendo na bagagem uma visão idealizada do país.

Não é confortável ver o clichê de um lugar tranqüilo, asséptico e espiritual, onde as pessoas entoariam mantras o dia inteiro, dissolver-se na poeira, na fumaça e na sujeira das ruas, na algaravia constante das multidões – onipresente num país com mais de 1 bilhão de habitantes –, na miséria exposta de milhões de pessoas, na esperteza de certos mistificadores e, sobretudo, no trânsito infernal das cidades, onde pedestres, carros, riquixás (triciclos movidos a motor ou a pedal) e vacas têm que improvisar acordos na ausência de semáforos.

Para alguns, é a frustração de um projeto de vida. “Já vi pessoas que vieram para ficar três meses retornarem na primeira semana”, disse-me o canadense Gilles Bacon, um professor de yoga de Montreal que, pela terceira vez, está passando 1 ano na Índia. “Algumas choram, decepcionadas”.

Como os conquistadores arrogantes de outrora e os preconceituosos de todas as épocas, os que se agarram aos contornos imaginários de uma Índia etérea e pura acabam impossibilitados de perceber uma outra sutileza desse complexo subcontinente. Na Índia, o presente não descarta o passado e muitas eras compartilham o mesmo espaço, numa aquarela de hábitos, idéias, crenças, filosofias e também ciência que se relacionam até quando se encontram em aparente rota de colisão.

Quem consegue superar esse choque inicial, logo percebe que a Índia, apesar de seus contrastes, não é um país mergulhado no atraso, em descompasso com o mundo globalizado. Ela detém a segunda concentração de PhDs do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos, fornece especialistas em informática para vários países, dispõe de um excelente sistema de comunicações, envia satélites ao espaço e até virou potência nuclear.

Favorecida por um estado laico e democrático, sua economia cresce ao ritmo de 7% ao ano e pode tornar-se a terceira do planeta até 2040, segundo algumas previsões. É, no entanto, zelosa de seu patrimônio cultural e espiritual de mais de 5 000 anos e a ele se refere constantemente para viver o presente, ainda que não existam garantias de que continuará a fazê-lo para moldar o futuro.  Conhecê-la é desfrutar de uma oportunidade rara de realizar uma viagem física no tempo, navegando na diversidade e complexidade do único império ancestral a sobreviver quase intacto nos nossos dias, com seu arcabouço filosófico a cada dia mais solicitado no ocidente .

Em Varanasi, a mais sagrada das sete cidades sagradas do hinduísmo, deparei com um retrato perfeito dessa acumulação dos séculos. Numa viela enlameada, uma vaca, ciosa de seu status divino, aguarda a passagem de devotos de Shiva, a caminho do Templo Dourado, esgueirando-se sob a placa de uma lan house bem equipada, onde jovens se conectam ao resto do mundo pela internet. Pés descalços e testas marcadas pelo vibhuti vermelho, a cinza sagrada com a qual os hindus assinalam o ajna – o olho astral, entre os supercílios -, muitos na multidão portam telefones celulares sofisticados, produzidos a alguns quilômetros dali e exportados para vários países. Quando uma brecha se abre entre os fiéis, a vaca cruza a viela, entra por uma pequena porta e, finalmente, acomoda-se num curral doméstico de menos de 20 metros quadrados para espanto de visitantes, como eu. Que país conseguiria manter assim, tão próximos e interagindo, uma era de rituais totêmicos e os tempos cibernéticos? A Índia consegue e, às vezes, isso é difícil de entender se não olharmos para a mitologia sobre a qual ela existe e se move.

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À margem de rios e na solidão das florestas, os indianos conceberam no passado um universo que – ao contrário daquele modelo estreito e linear, centrado na Terra, adotado por muitos séculos no ocidente – tinha dimensões incomensuráveis e ciclos temporais que se repetem e se entrelaçam. Nessa representação, é possível a convivência dos opostos e compreensível a existência de um panteão de divindades que beira os 36 000 deuses e semideuses, cada um expressando tão somente aspectos, diferentes e polarizados, de uma única substância. Desde a concepção védica, baseada em arquétipos e cultos tribais, o universo indiano é complexo e repleto de atalhos que realçam a impossibilidade de um sentido único, evidenciam a ilusão das formas e nos convidam a fruir o prazer dos encontros inevitáveis. A Índia vive esse modelo. Para entendê-la, é preciso que esqueçamos, ainda que por um breve tempo, o pensamento lógico de nossas elaborações e comparações, permitindo-nos o deleite em suas cores e crenças sem a preocupação de explicar coisa alguma.

Em Bodhgaya, a cidade onde Sidarta Gautama tornou-se o Buda, ao ver budistas e hinduístas praticando rituais distintos sob o mesmo templo, perguntei a meu jovem guia, Habi, qual a sua religião. Habi respondeu, sorrindo: “Na Índia, todos somos hinduístas. Tudo é hinduísmo”. Não poderia ser mais preciso. O que chamamos hinduísmo – e essa é uma palavra criada pelos ingleses no século XIX – não constitui uma doutrina homogênea, mas uma amálgama de crenças ancestrais, seitas e filosofias que têm por base a idéia de um universo multifacetado, essencialmente inexplicável e só compreensível pela experiência.

Talvez esteja aí o espírito zen que tantos buscam e nem sempre encontram nas peregrinações junto ao Ganjes e nos retiros com gurus: uma abertura fundamental para a vida, a disposição de fluir com ela e, ao contrário do que imagina o senso comum, também para interagir e mudar com as circunstâncias.

Na mitologia hindu, registrada parcialmente no gigantesco poema épico Mahabharata e no Ramayana, nem os deuses estão presos às suas identidades e atribuições. Shiva já foi Rudra na pré-história védica. Gayatri, um raio do sol, metamorfoseou-se numa deusa de cinco cabeças. Indra perdeu parte de seu poder. Textos sagrados se sucederam e se completaram ao longo de milênios. Abaixo desse Olimpo, a Índia humana e concreta também se move, mais rapidamente do que podemos perceber à distância, na direção de um futuro só em parte decifrável. As vitrines do Connaught Place, a área do comércio chique de Delhi, não escondem, com a sua profusão de modelitos ocidentais e roupas sumárias, que os indianos estão sendo assediados por novos desejos. A escassez de santuários hinduístas nas ruas de Bangalore, a capital da informática e da biotecnologia na Índia, talvez seja um sinal de que Krishna e Ganesha já disputam espaços com os deuses da tecnologia. A explosão em Mumbai – a locomotiva econômica e cultural do país -, de bares que vendem bebidas alcoólicas e de  boates liberais onde até um tímido movimento gay mostra a cara apontam para o início de uma revolução de costumes numa Índia tradicionalmente conservadora e pacata.

O espírito da Índia ancestral e ascética sobreviverá a esses tempos de Mc Donalds e Pizzas Hut, de rock e música tecno, debates na imprensa sobre liberação sexual e consumo explícito nas ruas e na televisão?

Talvez a resposta certa para essa questão seja a que ouvi do executivo Shaile Singh, no trem que me levou a Rishikesh. “Há séculos os ocidentais despejam aqui suas novidades. Nós as absorvemos e as transformamos”, disse o jovem, devoto de Hanuman, o mítico macaco servidor de Rama, invocado pelos hindus nas situações em que se faz necessária uma saída criativa. Talvez a razão esteja com a serenidade de Deepak Lakshman, um engenheiro de cabelos grisalhos que encontrei a caminho de Puri, no extremo leste. “Chegou a hora do equilíbrio”, afirmou. “É preciso aproveitar o melhor dos sistemas de vida do oriente e do ocidente”. Talvez, enfim, estejam certos os que acreditam que a cosmogonia e o conjunto de tradições que resistiram a séculos de invasões e domínio estrangeiro sucumbirão em breve ao furacão da cultura ocidental globalizada.

Na dúvida, o melhor é arrumar as malas e ir já conhecer o que a Índia tem a mostrar como senhora do tempo, uma deusa de mil faces.