A elite tem uma relação de convencimento com a classe média para saquear o país, diz o sociólogo Jessé de Souza

Atualizado em 16 de agosto de 2017 às 16:43
Jessé Souza

Publicado no ExtraClasse.

Nada mais falso que atribuir as mazelas e desigualdades do Brasil a uma herança cultural portuguesa, como gostam de repetir certos intelectuais brasileiros: “uma intelectualidade que diz besteiras como a de que viemos dos portugueses, que trata de uma herança ibérica maldita, de corruptos, e de uma autoestima de vira-lata, uma loucura repetida na sociedade nas escolas e na mídia”, dispara o sociólogo e cientista político Jessé de Souza, que recém-lançou o livro A elite do atraso – da escravidão à Lava Jato.

A obra discute a importância da escravidão na formação da sociedade brasileira e na perpetuação do ódio e da indiferença que permeiam as relações sociais e forma uma espécie de trilogia com os anteriores A ralé brasileira (2009) e A tolice da inteligência brasileira (2015). Nesta entrevista, o ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) discute os conceitos abordados no seu novo livro, analisa a conjuntura política, o golpe, e compara a realidade brasileira com a de outros países. Para Souza, as elites brasileiras passaram a perna na classe média com um discurso anticorrupção para poder se apropriar das riquezas do país: “nossa elite montou uma relação de convencimento com a classe média para saquear a riqueza de todas as classes ao máximo”.

Extra Classe – Qual a relação do contexto atual com as origens da sociedade brasileira que o senhor aborda no seu mais recente livro A Elite do Atraso: da Escravidão a Lava Jato?
Jessé de Souza – Tento discutir a conjuntura atual, mas lançando uma luz histórica, uma genealogia. Isto é extremamente importante porque a imagem do Brasil que temos hoje, que nos é repassada nas escolas, em livros, jornais e outros meios, é uma imagem falsa. Ela afirma que viemos de Portugal e que, por conta disto, somos patrimonialistas, temos uma tendência à desonestidade e a corrupção. É aquela concepção de vira-lata do brasileiro, moldada por intelectuais brasileiros, o que é algo impressionante. Que outros moldem essa imagem, porque a partir dela poderão, por exemplo, receber a Petrobras a preço de banana, é até compreensível, embora lamentável. Agora, que nossos intelectuais montem uma imagem que nos limita e humilha, isso é inadmissível.

EC – Da parte de quem pensa o país é sempre colocada a relação entre o patrimonialismo e o clientelismo existentes e a ‘herança portuguesa’, sua influência sobre como nos desenvolvemos como nação. É um equívoco?
Souza – Exatamente. Não havia escravidão em Portugal. Nós somos filhos de instituições. Basta o leitor pensar na concepção da família. A família muda os filhos, características de pai e mãe. Você observa comportamentos, questões como o andar… Mas não é só isso. Existe a visão de mundo. Somos moldados por instituições: a família, depois a escola e assim por diante. E a instituição mais importante que temos no Brasil é a escravidão. Então como fica esta história do ‘viemos de Portugal’ para explicar determinadas questões se não havia escravidão lá? Essa é uma explicação fajuta, marota, sem pé e nem cabeça, e na qual acreditamos. É uma explicação relacionada a algo extremamente importante, porque determina que nosso mal é a corrupção e que ela está na política e no Estado. E, assim, garante invisibilidade para a real corrupção, que nos dias de hoje é a montada pelo mercado, pelos oligopólios e atravessadores. Isto faz com que a base real do poder fique invisível.

EC – Qual é essa base real do poder?
Souza – Faço uma reconstrução histórica, repondo a questão da verdadeira elite, que faz o assalto real à população brasileira, e que está no mercado. Porque, no fundo, se fizermos uma analogia entre esta corrupção que está tão na moda hoje em dia e o narcotráfico, os políticos desempenham o papel dos ‘aviõezinhos’. Eles não são os chefes, eles ficam é com as sobras. Quem realmente assalta a população são os oligopólios que impõem preços e os atravessadores financeiros que impõem a taxa de juros mais alta do mundo, embutida em tudo o que compramos. O nosso dinheiro, o de todas as classes, vai para essa pequena elite financeira. A construção real é esta.

EC – O senhor defende a alteração dos que são apontados como fatores originários da formação do país? A base sobre a qual o país se estabeleceu como tal é a escravidão, é isso?

Souza – Sim, exatamente. A transmissão cultural ela não se dá biologicamente. O leigo tem essa figura: “Ah, eu sou filho de italianos, então eu sou italiano.” Ora, isso depende. No caso de uma sociedade na qual a escravidão tem papel determinante, uma parte desta sociedade considera que os escravos não são gente, não os considera humanos, não se identifica com o sofrimento de pessoas que já define como sendo de outra espécie, subgente, como algo a ser explorado a preço vil. É o que fundamenta uma sociedade de senhores e escravos. Como nunca vimos a escravidão como nossa fonte, nossa semente, nossa real questão, falamos dela, mas não fazemos a crítica aprofundada. Como consideramos que ‘viemos de Portugal’, não refletimos efetivamente sobre esta questão. E o passado sobre o qual não há reflexão está condenado a se repetir. De outras formas, mas se repete.

No Brasil, a forma como mais se repetiu foi a do ódio aos pobres. Não há da parte da classe média uma identificação. Existe aí uma certa burrice porque, quando você qualifica os mais pobres, eles consomem mais, eles produzem mais. Tivemos um exemplo de que isso funciona no passado recente, de uma expansão do mercado que não havia sido feita antes. Mas aí vem a necessidade de distinção, de humilhar, de parte da sociedade precisar se sentir superior. Somos um Estado no qual existem políticas formais deste ódio aos pobres. A matança dos pobres, as chacinas, verdadeiros absurdos, uma parte expressiva da classe média aplaude. O que isso mostra? Um ódio típico de regimes escravocratas. O que procurei fazer foi recuperar isso e mostrar como é importante até hoje.

EC – Qual a relação entre esta origem escravocrata e a indignação contra a corrupção e os escândalos da política?
Souza – Vamos pensar no que houve no ano passado, que foi feito um golpe por conta de uma indignação contra a corrupção. Isto hoje não entra mais na cabeça de ninguém. Porque a corrupção está se mostrando em outros partidos, em outros lugares, muito maior do que aconteceu em 2016, e ninguém está se indignando com coisa nenhuma. Não vejo ninguém bater panela e vestir camisa amarela. Então, é só a corrupção ligada a um partido. O tema da corrupção foi um mero pretexto. O que estava indignando os setores de classe média? As reformas, por sinal muito lights, que o PT estava fazendo. Elas estavam relacionadas à diminuição da distância entre as classes. E os pobres estavam, principalmente, começando a entrar na universidade. A universidade é a base do privilégio da classe média: o acesso exclusivo às fontes de conhecimento prestigioso, que resultará na formação de juízes, professores universitários, economistas, advogados. Os pobres estavam entrando neste caminho. As pessoas se incomodarem com a diminuição desta distância é algo escravocrata entre nós.

EC – Este comportamento, este ódio que o senhor atribui à classe média, ele não perpassa todas as classes? Não é um comportamento disseminado também entre pobres e ricos?
Souza – A segunda parte do livro trata disso. Procuro analisar o que chamo do pacto antipopular do Brasil. Este pacto se forma no começo do século 20, após a abolição. Trato do que chamei de ralé. Por que ralé? Porque é uma parte da população abandonada pela sociedade e explorada pela classe média como mão de obra barata para tração animal. Um exemplo? Uma cozinheira que fica sete horas em pé em frente a um fogão. São pessoas que não foram à escola, não tiveram acesso ao conhecimento escolar que vai dar ensejo ao mercado competitivo. Isto é o que a classe trabalhadora possui em oposição a esses excluídos entre nós. Essa ralé de novos escravos é constituída e mantida sob o ódio, como se fosse culpa dela, como se algum ser humano escolhesse ser pobre e humilhado. E esse é o único tipo de ideia que os pobres recebem. Eles não são instigados a ter opinião própria, não são estimulados a pensar autonomamente. Foi construído entre nós um mecanismo no qual os ricos não possuem só os meios de produção material, mas também os meios de produção simbólica: a informação e o conhecimento. Os pobres possuem um conhecimento superficial, que esconde diversas coisas, e que se transformou em uma grande indústria.

EC – Não é confortável atribuir a responsabilidade exclusivamente às elites?
Souza – Nossa elite é tão saqueadora, abusiva e rapineira como a elite de uma sociedade escravocrata. Ela não é uma elite chinesa, que planeja o país a longo prazo. A elite chinesa aumentou a renda média da sociedade como um todo. Este não é o plano da nossa elite. O plano da nossa elite é estabelecer como vai saquear a riqueza de todas as classes ao máximo a cada ano. É uma elite do saque. Não é como a japonesa, a francesa ou a alemã. Porque as elites, em todo o lugar, ficam, é claro, com a parte melhor do bolo. Mas elas têm planos de longo prazo, até porque esses planos são importantes para que elas se mantenham comendo a melhor parte do bolo. A nossa não. A nossa quer o saque imediato. O pensamento é: ‘como posso explorar ao máximo agora com juros da dívida pública? Como posso ter juros extorsivos, mais altos, que elevam os preços de tudo o que se compra?’. É uma passagem do dinheiro de tudo o que todos produzimos para o bolso de uma meia dúzia. E essa elite montou uma relação de convencimento com a classe média. Para os pobres a gente passa o pau, manda a polícia. A classe média a gente convence. E assim se moldou uma intelectualidade que diz besteiras como a de que viemos dos portugueses, que trata de uma herança ibérica maldita, de corruptos, e de uma autoestima de vira-lata… É uma loucura repetida por grandes intelectuais: Sérgio Buarque, Raimundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso, Roberto DaMatta. Esse pessoal todo desenvolveu essa linguagem e ela não fica só nos livros. Ela é repetida na sociedade, nas escolas e, principalmente, na mídia.

EC – Mas, atualmente, não existem muito mais mecanismos que possam barrar esta espécie de retroalimentação de um sistema?
Souza – Vou dar o exemplo da mídia. A mídia não cria ideias. Ela amplifica ideias que são de intelectuais. Isto no Brasil foi montado por uma elite que criou universidades como a USP, que tem jornais que sacralizam essas ideias. Não é uma elite que produz apenas bens materiais. Ela produz bens simbólicos, como informação e conhecimento. Isso é repassado em canais de rádio, televisão e outros meios para a população, pela mesma elite. Então, o que é passado para a população como um todo é essa leitura interessada em definir que a corrupção é dos políticos e do Estado, e que o mercado é um santo, que pode ser definido com um conceito de paradisíaco, um lugar no qual só existe gente boa. E as pessoas acreditam nisso. A sociedade não é contraposta a ideias divergentes. O ser humano aprende e tem opinião autônoma quando é contraposto a opiniões distintas e, a partir da contraposição delas, monta sua própria opinião. Então, eu pergunto: você já viu um programa na Rede Globo que apresente opiniões distintas? Eu nunca vi. Existem concessões públicas que deveriam ser uma esfera de discussão, mas que, na prática, exercem o papel de aprisionamento dos espíritos.

EC – O senhor trata também da ascensão da ‘nova classe média’ nos governos petistas e aponta equívocos no processo. Essa ascensão acirrou ainda mais os ânimos de todas as partes?
Souza – Isso piorou. Porque foi um marketing pouco inteligente da parte do governo. E falo este termo usando um eufemismo, para ser gentil. O que houve: foram criados mecanismos extremamente importantes do aumento do poder de compra, com 70% de aumento real do salário mínimo, 10 milhões de empregos formais, acesso à educação, aumento de alunos negros em salas de aulas. Agora, era preciso construir uma narrativa para essas ações. Era preciso dizer a essas pessoas: ‘olha, conseguimos isso agora, e mais adiante teremos a batalha da educação, a batalha de construir uma matriz econômica para que as pessoas possam ter um emprego melhor’. Não houve nada disso, ou seja, não se construiu uma narrativa. Deixaram a narrativa para a Rede Globo. Ou então para as igrejas pentecostais. Não tenho nada contra elas. Mas elas possuem seus próprios interesses, que não são necessariamente os interesses de uma inclusão política como a que estava sendo realizada. As pessoas precisam de uma narrativa. Os seres humanos precisam de uma interpretação sobre o que estão fazendo. E então, depois, houve quem se surpreendesse com o fato de o povo não sair às ruas (para defender o governo da ex-presidente Dilma Rousseff). Ora, você não explicou ao povo a sua defesa! Foi um erro.

EC – Dizer que milhões de pessoas haviam chegado à classe média também foi um erro?
Souza – Sim, foi um erro. A classe média é a classe do privilégio. Por quê? Porque no capitalismo os capitais principais têm a ver com o capital econômico, que é o mais fácil de ser compreendido, mas também estão relacionados ao capital do conhecimento. No capitalismo o conhecimento é tão importante quanto o dinheiro. Porque não há nenhuma função no mercado ou no Estado que se possa exercer sem conhecimento. O acordado entre a classe média e a elite pressupõe que a elite fique com o capital econômico e a classe média fique com os bons empregos, a supervisão, o controle e a legitimação do sistema: advogados, economistas, juízes e etc., como vemos cada dia mais. Isto está relacionado ao acesso ao conhecimento e o prestígio. A classe média é uma classe privilegiada porque tem um acesso privilegiado a um tipo de capital que não é econômico, é cultural, mas que é extremamente importante porque depois permitirá o acesso aos empregos com salários importantes, reconhecimento e prestígio. Por conta disso, a classe média se apega a esses privilégios e os repassa a seus filhos. Ou seja, é um esquema de reprodução da dominação. Também não houve uma narrativa explicitando esta luta, informando os passos das melhorias e dizendo que isso demanda tempo. Foi um trabalho muito malfeito.

EC – Uma das maiores críticas aos governos petistas é de que só dividiram renda da classe média para baixo, atribuíram quase que exclusivamente à classe média a responsabilidade pelas desigualdades sociais do país e deixaram intocados privilégios e concentração de renda das elites, o que só teria feito aumentar o chamado ‘ódio de classe’. O senhor discorda?
Souza – Não se tocou nas elites por uma razão muito óbvia hoje. Porque, se fosse assim, o presidente Lula não conseguiria sequer assumir a presidência. Essa elite econômica, os grandes bancos, os grandes atravessadores financeiros, os grandes oligopólios, esse pessoal tem o controle, esse pessoal manda em tudo. Nas grandes cadeias de TV podem difamar, podem mandar alguém para o céu ou para o inferno. Podem comprar o Parlamento. Mas o que faltou não foi um acordo inicial. Foi, com o tempo passando, não se ter pensado modos de criação de anteparos para que o povo também tivesse uma educação política melhor. Teria sido muito importante uma televisão pública. Não uma TV estatal. Uma TV pública, onde pessoas com suas posições pudessem expor seu pensamento. Não o que a Globo e a Bandeirantes fazem. Elas colocam cinco ou seis pessoas com a mesma opinião, criam um circo, uma palhaçada de pessoas passando a bola uma para a outra.

EC – A sociedade brasileira é dissimulada? Ela se diz cumpridora das regras e defende a igualdade, mas se norteia pelo princípio de burlar a regra quando ninguém está olhando, ou de mudar a regra conforme o mais conveniente? O senhor diria que a homogeneização não é um objetivo de fato da sociedade brasileira?
Souza – Exatamente. E essa é a nossa falha. Não é a condição da política. Os problemas históricos não vêm de heranças culturais. Eles vêm de alguns processos de aprendizado que algumas sociedades passam e outras não. Estive muito tempo na Alemanha, um país com uma grande mancha histórica, o nazismo. Em decorrência disto, o que aconteceu lá? A sociedade moderna alemã foi moldada contra o nazismo. Isto é estudado em todas as escolas, saem documentários em todos os lugares. A questão não foi jogada para debaixo do tapete. Vamos comparar: a nossa escravidão, a condenação de classes inteiras a uma vida sem direitos e sem dignidade, ao invés de serem amplamente debatidas, quase não são tocadas. Ocorre o contrário, o tema é romantizado em novelas e tal. Ora, deixamos de chamar favelas de favelas e passamos a chamar de comunidades. Não enfrentamos as questões efetivas. Isso faz com que se criem sempre mecanismos superficiais, que não mudam a situação em definitivo. De novo, há uma vinculação com a captura da esfera pública pelo dinheiro. O dinheiro invade as esferas e impõe visões de mundo relacionadas a sua própria reprodução. É uma realidade muito distinta da realidade europeia, mas que se assemelha bastante aos Estados Unidos. Os Estados Unidos são um país muito rico, mas que possuem uma desigualdade e uma violência muito semelhantes às nossas.

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