A frase infeliz de Lula, o novo filme de Spielberg e a censura seletiva no Brasil. Por Kiko Nogueira

Atualizado em 29 de janeiro de 2016 às 9:49
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A entrevista de Lula com blogueiros, na semana passada, teve três horas e meia de duração, mais ou menos. Poderia ter sete, facilmente. Lula gosta de falar, fala muito e sobre virtualmente tudo. É algo que fará cada vez mais este ano, avisou.

No meio do encontro, soltou uma bravata francamente infeliz. “Se tem uma coisa que eu me orgulho, neste país, é que não tem uma vivalma mais honesta do que eu”, declarou. “Nem dentro da Polícia Federal, nem dentro do Ministério Público, nem dentro da Igreja Católica, nem dentro da igreja evangélica. Pode ter igual, mas eu duvido”.

É uma besteira por razões óbvias — nem Jesus Cristo diria isso. No entanto, acabou tomando um tamanho absolutamente desproporcional, também por razões óbvias.

Em mais de 200 minutos, esse pedaço foi pinçada do contexto para ser usado como ilustração de um hipócrita, cínico etc. Vai acompanhá-lo por muitos anos.

Cada entrevista de Lula é imediatamente seguida de uma onda de histeria coletiva. No entanto, o que se critica realmente não são as bobagens — mas o fato de ele não ficar quieto.

No sonho de seus adversários, ele faria um voto de silêncio. Mas Lula teima em exercer seu direito garantido pela Constituição, por enquanto, de dizer o que acha das coisas. Errando ou acertando.

Quando isso se junta ao medo de que ele concorra à presidência, a combinação torna-se explosiva.

Eu estava na coletiva. E depois ouvi, em situações diferentes, mas sempre mal intencionadas, alusão àquele trecho. “Por que ele não cala a boca?”, um sujeito perguntou. Ora, isso seria bem mais fácil, não é mesmo?

O Brasil está repetindo, com mais de 60 anos de atraso, a paranoia macartista. O novo filme de Spielberg, “Ponte dos Espiões”, que concorre ao Oscar, pinta um retrato do que vivemos hoje.

Passa-se no final dos anos 50, durante a Guerra Fria, e é baseado em fatos reais. Um advogado chamado James B. Donovan (Tom Hanks) é escalado para defender o espião soviético Rudolf Abel (Mark Rylance, excelente), capturado pelo FBI.

Donovan deveria fazer uma defesa protocolar, quase farsesca, apenas para assegurar à opinião pública de que nos EUA, ao contrário da URSS, agentes também tinham direito a julgamento.

Mas ele resolve trabalhar a sério. Abel, argumenta Donovan, não fazia nada diferente do que espiões americanos estavam fazendo na Rússia. As provas colhidas em sua casa não foram feitas de maneira legal. Os fins não justificam os meios. Propõe a troca de prisioneiros entre os dois países. Apega-se a seu cliente comunista.

É massacrado pelos tabloides e por colegas. No metrô, é reconhecido e intimidado. Sofre um atentado em casa. O policial responsável pelo caso o xinga na varanda e se recusa a investigar o ocorrido.

Você reconhecerá vários revoltados online na fita. Aquele tipo de idiota que se descobriu feliz ao apontar o dedo e sair berrando — e que acha que o estado de direito deve servir apenas a alguns eleitos, enquanto outros merecem ser condenados a priori.

O Brasil regrediu. Os extremistas, com o auxílio luxuoso do Facebook, acham que podem tudo. A tentativa de cassar a palavra alheia vai se intensificar. Para Lula, independentemente do que fale, usar um microfone já configura crime. E sem prescrição. 2018 não tem hora para terminar.