A Globo usa uma tragédia carioca em sua campanha pela redução da maioridade penal. Por Kiko Nogueira

Atualizado em 22 de maio de 2015 às 10:18

 

O médico Jaime Gold
O médico Jaime Gold

 

A tragédia com Jaime Gold, assassinado na Lagoa Rodrigo de Freitas quando andava de bicicleta, está sendo usada de maneira escandalosa num proselitismo a favor da redução da maioridade penal.

Gold tomou três facadas no abdômen. Os bandidos levaram sua bike, carteira e celular. No hospital Miguel Couto, foi submetido a uma cirugia, mas não resistiu.

Desde o início havia a possibilidade de que os criminosos fossem menores de idade. A cobertura de sua morte extrapolou o jornalismo e se transformou em campanha.

Reproduzo aqui uma série de tuítes de matérias do jornal O Globo perpetrados em dois dias:

. Morre ciclista esfaqueado por bandidos na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio.

. Frequentadores da Lagoa, no Rio, dizem que falta policiamento no local

. Morte de ciclista na Lagoa é ‘inadmissível’, diz Beltrame

. Cara ou barata: ciclistas dizem que ladrões visam todos os modelos de bicicletas

. ’Uma tragédia anunciada’, diz presidente da Comissão de Segurança no Ciclismo

. Filha de médico esfaqueado na Lagoa desabafa: ‘Uma bicicleta e uma carteira por uma vida’

. Morte na Lagoa: Pezão diz que não adianta polícia prender bandidos, se Justiça solta

. ‘Não dormi, pensando no que aconteceu’, diz médico que socorreu ciclista esfaqueado na Lagoa

. Após ataque brutal, movimento de esportistas diminui na Lagoa Rodrigo de Freitas

. Cidade do Rio tem pelo menos 167 pessoas feridas a faca nos primeiros quatro meses de 2015

. Polícia Civil apreende adolescente suspeito de esfaquear médico na Lagoa

. Corpo do médico esfaqueado no Rio será sepultado no Cemitério Israelita do Caju

. Pezão admite que houve erro no policiamento da Lagoa, onde médico foi esfaqueado

. Suspeito de matar ciclista nega participação no crime, mas confessa roubos na Lagoa

. Artista faz ilustração em protesto contra a morte de ciclista na Lagoa, no Rio

. Após morte de ciclista, frequentadores da Lagoa farão protesto no domingo

Parte dessa insistência é fruto da obsessão riocêntrica da publicação. Outro pedaço é sensacionalismo puro. Uma das matérias tinha como título o seguinte: “Médico esfaqueado por assaltantes na Lagoa assumiu criação dos filhos após divórcio”.

“Como diziam os mais antigos, ele não era deste mundo”, abre o texto. As pedaladas enchiam “o coração do doutor de alegria” (Gold era cardiologista). E por aí vai.

A Globo é a favor da redução da maioridade penal e é seu direito inalienável. A questão é a exploração de alguém que não pode se defender.

No mês passado, o jornal publicou um editorial intitulado “Destravar o debate”. “Os indicadores evidenciam que a política brasileira para enfrentar a crescente criminalidade juvenil é um fracasso, tanto do ponto de vista judicial quanto dos programas de reinserção social”, lê-se.

Jaime Gold virou mártir involuntário da causa. Ontem, dia 20, a polícia apresentou um dos suspeitos. Ele tem 16 anos e já havia sido capturado pelo menos dez vezes por uso de drogas, roubo e ataques com faca.

Pronto. Nas redes, há centenas de pessoas pedindo seu linchamento. A sede de vingança precisa ser saciada. O adolescente é símbolo da impunidade, da fragilidade das instituições, da incapacidade de lidar com esses animais.

Em meio ao tiroteio, a voz mais sensata foi a da ex-mulher de Gold, Márcia Amil, mãe de Daniel, 22, e Clara, 21. Para ela, Jaime foi “vítima de vítimas, que são vítimas de vítimas. Enquanto nosso país não priorizar saúde, educação e seguranças, vai ter cada vez mais médicos sendo mortos no cartão postal do país. E não só médicos, afinal, morrem cidadãos todos os dias em toda a cidade”.

Todo crime bárbaro longe da favela traz em sua esteira um discurso demagógico e, no final das contas, perigoso. A sensação de alarme gera a ideia de que é preciso combater com mais violência os que atacam a sociedade. Márcia Amil fugiu do script, mas o teatro seguirá adiante.