A indignação evangélica seletiva de Ana Paula Valadão com o comercial da C&A. Por Hermes Fernandes

Atualizado em 21 de maio de 2016 às 8:25
Valadão
Valadão

 

Depois que o Malafaia propôs que seus fiéis boicotassem os produtos da Boticário, o Feliciano sugeriu o boicote à Natura, chega a vez da pastora e cantora Ana Paula Valadão utilizar sua influência no mundo gospel para pedir que seus fãs boicotem as lojas C&A. De acordo com a pastora mineira, a última campanha publicitária da rede seria um acinte à família e aos valores cristãos, sugerindo que sua verdadeira intenção seria propagar o que ela chama de “ideologia de gêneros”.

Do ponto de vista publicitário, a peça é belíssima. Locação e fotografia impecáveis. Fala-se, nas entrelinhas, da igualdade de gênero e de liberdade de escolha, valores cada vez mais caros à sociedade ocidental. Porém, Ana Paula não vê outra coisa que não seja a disseminação de tudo o que é contrário à sua fé. Ela sugere aos fiéis que promovam um boicote semelhante ao que os evangélicos americanos fizeram à rede de lojas de departamento Target, rendendo-lhe um histórico prejuízo.

De acordo com alguns sites dedicados ao público evangélico, o que teria motivado a cantora seria vingança, pois a C&A teria se recusado a contratá-la como garota propaganda, depois que ela pediu de cachê uma bagatela de três milhões de reais.

Interesses comerciais à parte, o que incomodou aos evangélicos mais conscientes foi o falso moralismo proposto pela campanha. O que deveria chocar e causar o que ela chamou de “santa indignação” não são homens usando roupas femininas ou vice-versa. Em momento algum, Ana Paula mencionou o recente escândalo em que a loja se envolveu relacionado ao uso de mão de obra de escrava. Em sua visão religiosa tacanha, deve-se boicotar a loja por estimular a permissividade, a sem-vergonhice, a nudez despudorada.

Por que deveríamos nos importar com trabalho escravo? Por que ficar chocado com gente amontoada em oficinas clandestinas, incluindo imigrantes ilegais e até crianças? A julgar pelo perfil que os evangelhos traçam de Jesus, com o que ele realmente se importaria?

Em apoio à primeira dama interina
Em apoio à primeira dama interina

 

Com um comercial que promove mais do que simplesmente consumismo ou com a exploração e a opressão a que são submetidas centenas e até milhares de pessoas em confecções que abastecem as grandes lojas de departamento como a Zara e a própria C&A? Isso sim é imoral. Isso que deveria nos causar indignação (não precisava nem ser santa!), independentemente de credo. Mas, pelo jeito, a indignação da cantora, além de não ser nada santa, também é seletiva.

Enquanto prevalecer tal mentalidade pudica entre boa parte dos evangélicos, dar-se-á muito mais importância à sexualidade alheia do que ao sofrimento alheio. De que adianta ser bela, recatada e do lar e perder o bonde da história, mergulhada em alienação?

De que adianta aparecer de avental e colher de pau nas redes sociais em apoio à primeira-dama interina do país, mas não ter senso crítico social?

Já passou da hora de parar de coar mosquitos enquanto ficamos com dromedários atravessados na garganta. Menos falso moralismo e mais consciência social. Menos farisaísmo e mais solidariedade. Menos boicotes revanchistas e mais consumo consciente. Menos rancor e mais, bem mais amor.

Uma última sugestão para Ana Paula e seu séquito: Que tal nos preocuparmos menos com homens vestidos de mulher ou vice-versa e nos preocuparmos mais com lobos vestidos em pele de cordeiro?