A miséria da pauta do “Bom Dia Brasil”, onde press release ruim vira VT. Por Raymundo Gomes

Atualizado em 14 de julho de 2016 às 9:21
Cadê o jornalismo?
Cadê o jornalismo?

As assessorias de imprensa estão emplacando na Globo, em rede nacional, “sugestões de pauta” que mereceriam ir para a lata de lixo. Reflexo da miséria do jornalismo praticado nas principais redações do país.

Todos os dias, as redações de jornais, sites, rádios e emissoras de TV são bombardeadas com centenas de “press releases” – os textos de divulgação preparados pelas assessorias de imprensa para seus clientes. Salvo raríssimas exceções, é material jornalisticamente irrelevante, que vai direto para a lixeira virtual.

Ou deveria ir. Com a desidratação galopante das redações, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos, releases que não deveriam merecer um segundo de atenção estão sendo promovidos a material para exibição em rede nacional – na maior emissora do país.

Pauteiros inexperientes, mal remunerados ou simplesmente negligentes, em vez de dedicar tempo à elaboração de pautas reais, que informem à população dos verdadeiros problemas do país, recorrem preguiçosamente aos press releases para “criar” pautas previsíveis, quando não inteiramente irrelevantes, ditadas não pelo interesse do público, mas pelo de assessores anônimos.

Assim, no dia 12 de julho o Bom Dia Brasil exibe o seguinte VT: “Novo vilão da inflação deixa preço da pizza salgado”. A pretexto de falar do Dia da Pizza, data transcendente da nacionalidade, o telejornal da Globo abria a reportagem com esta estatística impressionante:

– O brasileiro come 1 milhão de pizzas por dia, mas os paulistas devoram mais da metade disso. Haja vontade de pizza, hein? – informou, animada, a apresentadora Glória Vanique. – Só que o preço de um dos principais ingredientes da redonda, a muçarela, não para de subir. O resultado desse aumento, pro desespero dos comerciantes, é a queda no consumo.

Passemos sem comentários o amontoado de clichês – “vilão da inflação”, “preço salgado”, “redonda” como sinônimo de pizza, tudo condenado pelos manuais de jornalismo que quase ninguém consulta mais.

Para dar conta da matéria, a Globo designou uma de suas melhores repórteres, Graziela Azevedo, que se defendeu com brio, mas que tinha em mãos (com perdão do clichê) uma tarefa inglória.

E de onde vem esse número de 1 milhão de pizzas diárias? Segundo a repórter, da “associação do setor”, que (nos informa uma arte inserida na imagem) é a “Associação das Pizzarias Unidas”. E o que vem a ser essa associação? Em seu site, na lista de associados, figuram 93 pizzarias, 80% delas de São Paulo e apenas duas ou três realmente conhecidas na capital paulista. Algumas não passam de portas de garagem que entregam pizzas. Isso mesmo, uma centena de associados com a pretensão de falar em nome do “setor”.

Uma rápida pesquisa no Google permite encontrar rapidamente a fonte dessa “estatística” – um release distribuído às redações em 24 de junho (18 dias, portanto, antes da exibição do VT no Bom Dia Brasil) pela assessoria de imprensa RedePress.

O release diz o seguinte:

“Paixão nacional, a pizza está presente no lar dos brasileiros, seja em uma comemoração, no domingo, e até na rotina semanal. Segundo levantamento realizado pela APUESP (Associação Pizzarias Unidas do Estado de São Paulo), diariamente são consumidas 1 milhão de pizzas no país, sendo 572 mil apenas em São Paulo – considerada como a segunda cidade que mais consome pizza no mundo – fica atrás apenas de Nova York.”

Como esse levantamento foi feito? Nenhuma explicação no reelease. No entanto, o Bom Dia Brasil compra sem questionamento o número, pois ajuda a valorizar a pauta, sem em nenhum momento perguntar como a APUESP fez para estimar o número de pizzas consumidas a cada 24 horas pelos 200 milhões de brasileiros.

Curiosamente, o release prossegue dando uma informação que vai no sentido exatamente inverso ao do VT da Globo. O consumo estaria AUMENTANDO, em vez de cair:

“Segundo o levantamento, a previsão das vendas de pizza, salão e delivery, para o segundo semestre de 2016 aponta um aumento de 10% em relação a 2015.”

Como a reportagem sustenta a tese inversa, de que o consumo caiu como um todo no país? Com base em apenas UMA pizzaria – isso mesmo, uma, a pizzaria 1900, no bairro paulistano da Vila Mariana. Por acaso, ou não, a 1900 é uma das poucas pizzarias importantes associadas à APUESP.

– É preciso malabarismo, porque o movimento caiu 8% este ano – diz a repórter Graziela, antes de entrevistar o dono da 1900.

E qual o dado que sustenta a informação de que o preço da pizza caiu? Um aumento de 10,13% do queijo em doze meses. Ora, o IPCA nesse período ficou muito perto disso (9,32% de maio de 2015 a maio de 2016), diferença que jamais justificaria uma queda no consumo ou um aumento do preço da pizza. “Vilão da inflação” onde?

Coincidência? Cinco dias antes da exibição do VT, a mesma RedePress, tendo a mesma APUESP como cliente, distribui à imprensa o release “Novo vilão: Preço do queijo sobe 30%”. O dado é atribuído a uma… “pesquisa feita pelo curso de ciências econômicas da Unochapecó”. Este dado, pelo menos, o Bom Dia Brasil não teve estômago para comprar. Mas a ideia do “queijo vilão da inflação” emplacou mesmo assim.

Já seria ruim se essa pauta tão fraca fosse um caso isolado. Mas em 9 de dezembro de 2015 o mesmo Bom Dia Brasil exibiu o seguinte VT:

“Cai a venda de pizzas em São Paulo”.

Isso mesmo, uma pauta idêntica, no mesmo telejornal, poucos meses atrás. O longo VT do repórter Walace Lara (quatro minutos, uma eternidade em televisão) cita como fonte a… Associação das Pizzarias Unidas. Desta vez os entrevistados foram Carlos Zoppetti, presidente da… Associação das Pizzarias Unidas; e Fábio Coriolano, dono da Mi Gusta Pizzaria, na Vila Madalena… membro da Associação das Pizzarias Unidas. Dois VTs no Bom Dia Brasil em pouco mais de seis meses: a assessoria de imprensa da APUESP está de parabéns por emplacar tanto material na Globo, em rede nacional.

Mas, para quem faz a pauta do Bom Dia, Brasil, nada disso importa muito. O que interessa parece ser arrumar uma pauta fácil “de gaveta” para pôr no ar nos dias de pouco noticiário. E é assim que o jornalismo tem sido praticado nas redações de todo o país.