A morte de Rafael pelo Bope e o genocídio de nossa juventude. Por Jean Wyllys

Atualizado em 28 de julho de 2015 às 11:19
Mais uma vítima do Bope
Mais uma vítima do Bope

Publicado por Jean Wyllys no facebook:

Estou muito comovido por esta notícia e peço a vocês que dediquem alguns minutos para ler o que vou contar. Hoje mais cedo, através de amigos e assessores, soube da morte de Rafael Camilo Neres, um jovem trabalhador de 23 anos que foi assassinado pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Rio de Janeiro no domingo à noite, enquanto entregava uma pizza no Morro da Coroa, no Rio Cumprido. Sim, ele era entregador de pizza, mas com esse emprego não ganhava o suficiente para viver, então trabalhava também fazendo entrega de livros para uma editora independente.

“Estou em estado de choque. Rafael, o nosso entregador, foi morto ontem pelo Bope”, contou o dono da editora, Sergio Cohn, a um dos meus assessores. “O Bope já está colocando ele como criminoso, apresentaram armas como se fossem dele. Vão tentar desqualificar. Ele era um garoto que criou uma empresa de entregas e, embora muito jovem, era muito sério e maduro, tanto que conversávamos em dividir um espaço para estocagem e logística conjunto. Lembro de Rafael ter feito outra entrega extraordinária, dois meses atrás, em um sábado na Casa Daros, para o lançamento da revista Mesa. Quando chegou, comentei que tinha ficado preocupado que ele não viesse, por conta de ser feriado e ter sido solicitado muito em cima hora. Ele respondeu imediatamente: ‘Não falto em compromissos’, mostrando sua seriedade e rigor”, diz Cohn. Eu já coloquei meu mandato a disposição dele e vou tentar contato com a família de Rafael.

A história se repete. A polícia chega na favela atirando, em alguma suposta operação “contra o tráfico”, mais uma vez, nessa absurda guerra contra as drogas que custa milhares de vidas. E sempre alguém morre. Às vezes, alguém envolvido no tráfico, geralmente um rapaz que chegou na “boca” procurando um meio de subsistência, numa sociedade que oferece a ele poucas alternativas. Outras vezes é um policial, que por um salário miserável arrisca a vida. Outras vezes, como aconteceu com Rafael, é alguém que simplesmente estava ali por alguma outra razão, como a entrega de uma pizza. Não vou falar em “vítima inocente”, porque inocentes são todos. Qualquer pessoa executada ilegalmente pelas forças de segurança é inocente. Só é culpado quem for condenado pela justiça depois ser julgado com direito de defesa e de acordo com a lei, e a execução não está prevista como pena no Código Penal. Não há, portanto, execuções justificáveis. Nenhuma.

Contudo, quando elas acontecem — e acontecem o tempo todo — a primeira reação da polícia é ocultar o crime dizendo que a vítima “era traficante”, palavra que é usada com uma grande flexibilidade semântica, incluindo desde Pablo Escobar até um menino de 16 anos que fazia uma bico para “o dono” do morro. Provas são plantadas, armas aparecem, drogas que não estavam ali são achadas. Às vezes, pouquíssimas vezes, algum jornalista investiga, a família ou os amigos conseguem falar com um parlamentar como eu, alguma ONG intervém, uma parte da classe média se comove, faz barulho e consegue ser ouvida de uma forma que os que moram no morro nunca são. E a verdade acaba sendo contada. Contudo, infelizmente, na maioria das vezes não é assim. O caso é fechado com a alegação de que a vítima era “traficante”, “bandido”, “marginal” — palavras que não são usadas quando um jovem branco, morador da Barra, vende drogas sintéticas numa festa badalada — e a manchete do jornal elogia o trabalho dos policiais. É o cotidiano de quem mora naqueles territórios das nossas cidades onde o Estado só chega em forma de blitz, caveirão e tiro de metralhadora.

A família de Rafael está tendo dificuldades para retirar o corpo do IML. Testemunhas contaram que o jovem pediu ajuda após tomar o primeiro tiro e o policial do BOPE pediu para as pessoas se afastarem, para ele poder “acabar o serviço”, e o baleou novamente. Um tiro no peito e outro no rosto. Enquanto a Câmara dos Deputados debate a infame proposta de redução da maioridade penal, o que vigora na vida real das favelas e das periferias é a pena de morte, executada pelas polícias no vácuo da legalidade. A polícia acusa, julga, condena e executa. E a justificativa disso é a fracassada e absurda “guerra às drogas”.

Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), só no Rio de Janeiro, em 2013, houve 4761 homicídios, 16,7% mais que em 2012. Desse total, 416 foram assassinatos cometidos pela polícia e registrados sob o eufemismo de “auto de resistência”. O panorama é assustador em todo o país. Entre 1980 e 2010, a taxa de mortalidade por armas de fogo no Brasil cresceu de 7,3 a 20,4 por cada 100 mil habitantes, mas esse número, já altíssimo, dobra quando falamos dos jovens: quando as vítimas têm entre 15 e 29 anos, a taxa é 44,2. E a principal causa disso é a guerra às drogas.

Precisamos acabar com esse genocídio da nossa juventude, que atinge principalmente a juventude negra, pobre e favelada. É uma realidade que os poderes públicos não fazem nada para reverter. E precisamos desmilitarizar as polícias e acabar com a lógica de exército de ocupação e combate contra os destituídos de cidadania que elas praticam, amparadas por governos e pelos discursos fascistas que proliferam na grande mídia. Se não mudarmos com urgência esse quadro, vamos continuar chorando mais e mais meninos como Rafael.

Precisamos dizer basta a essa lógica perversa. Não acabou, tem que acabar.