A página do Facebook “Eu Empregada Doméstica” tirou do armário nossa alma escravocrata. Por Sacramento

Atualizado em 24 de julho de 2016 às 9:20
Joyce Fernandes, autora da página Eu Empregada Doméstica
Joyce Fernandes, autora da página Eu Empregada Doméstica

 

Com relatos tocantes e mais de 20 mil curtidas conquistadas em menos de 24 horas, a página do Facebook “Eu Empregada Doméstica”, onde domésticas ou ex-empregadas podem enviar histórias de abusos e humilhações, virou matéria de destaque nos portais de notícia da internet.

A repercussão provocou uma torrente de comentários raivosos contra a iniciativa da rapper e historiadora paulista Joyce Fernandes. Compilei alguns dos portais G1 e UOL. No momento que escrevo este texto o link do G1 está com os comentários desabilitados, devido, talvez, à enxurrada de chorume.

“ESSA DESGRAÇA PARECE UMA VACA COM ESSE PIERCING NAS VENTAS., AGORA.. CONVENHAMOS…., O QUE DEU NA CABEÇA DESSA HONRADA FAMÍLIA, CONTRATAR UM TROÇO DESSE..?”

“Preta abusada! A mulher tirou essa escurinha da sarjeta e assim que ela agradece. Tô passada. Off”

“Querida se você está infeliz com o trabalho, ESTUDE e arrume outro melhor. É simples”

“quando começa a dar voz pra essas pessoas de “cor” com esse papo de passado escravo , milindre e mais milindre , ai eles acham que podem tudo agora , se acham maiorais e podem reclamar e sair por ai dizendo que esta sendo maltratados .”

“Mais um coitadismo de chorismo pra aparecer na mídia e ser a coitadinha. Historinhas inventadas”.

“Brasil….. Pátria sem leis e regras…… Geração mi mi mi….Tudo é discriminação e escravidão….Se o trabalho exige que Você traga marmita é seu direto aceitar ou recusar….Minha mãe foi doméstica a vida inteira e Graças ao seu digno trabalho e a bondade dos patrões conseguiu nos educar…. Trabalho é dignidade….Mais uma formada em escolinha esquerdista…..Petista de Araque…..Vai trabalhar desocupada…”

“Quer dizer então que ela não tinha opção? todo mundo tem opções , ninguém escolheu ser empregada doméstica, é tudo uma questão de profissionalismo e respeito..”

Pausa para um descarrego …

Intriga ver como um número considerável de pessoas usa o tempo para descarregar ódio e mau português em uma matéria com a qual não concordam, em vez de buscar o debate proposto pelos mecanismos de comentários.

Com infinitas possibilidades ao alcance dos dedos, por que um sujeito se dá ao trabalho de lançar ofensas racistas e desqualificar os questionamentos levantados pela campanha da rapper?

O conceito de projeção, da Psicologia, fornece algumas pistas. Em linhas gerais, a teoria diz que muitas pessoas projetam nos outros os próprios comportamentos ou sentimentos íntimos que repudiam.

Sob esta ótica, muitos dos que chamam a Joyce Fernandes de “vitimista” ou “oportunista” na realidade usam a verborragia online para atacar os próprios fantasmas.

Uma outra pista vem do conceito de sombra, criado pelo fundador da psicologia analítica Carl Gustav Jung. Trata-se da parte negativa da personalidade, onde estão os aspectos mais repugnantes e por não serem aceitos, são relegados ao inconsciente.

Jung escreveu, no clássico “O Homem e seus símbolos”, que “se você se enche de raiva quando um amigo lhe aponta um defeito, pode estar certo de que aí se encontra uma parte da sua sombra, da qual você não tem consciência. É natural que nos sintamos aborrecidos quando alguém que ‘não é melhor’ dos que nós vem nos criticar por defeitos relacionados à sombra”.

Pode ser que a campanha de Joyce e a revelação das humilhações que a atingiram nos tempos de doméstica tenham acertado as sombras de alguns comentadores de internet, que reagiram com fúria misógina, classista e racista.

Com seu projeto, a rapper explicita muito mais que os abusos cotidianos sofridos pelas empregadas domésticas. O rastro de reações negativas à página é o sinal de que há muita gente precisando passar por longas sessões de terapia, ou, nos casos mais extremos, tomar uns bons comprimidos tarja preta.