A partidarização da polícia está em xeque no Ministério Público. Por Mauro Donato

Atualizado em 29 de setembro de 2016 às 10:39
Painel com a imagem do fotógrafo Alex Silveira no MP
Painel com a imagem do fotógrafo Sérgio no MP

 

Nesta quarta-feira, o Ministério Público de São Paulo colheu depoimentos de jornalistas agredidos pela polícia nos últimos três anos.  A audiência pública intitulada “Tutela do direito à informação: cerceamento da atividade dos profissionais de imprensa em manifestações de rua e/ou atos públicos em razão da violência praticada por agentes do Estado” foi promovida pela Promotoria de Justiça dos Direitos Humanos e entidades como a Conectas, o Artigo 19, o Sou da Paz, e outros.

“O intuito é o de coletar provas para a base de um inquérito civil, é um ato de instrução na defesa da garantia dos direitos fundamentais. Não faremos uma apuração criminal e sim encaminharemos as denúncias de violência da Polícia Militar contra jornalistas”, afirmou o Promotor de Justiça Eduardo Valério.

Já não era sem tempo, pois a escalada iniciada em 2013 permanece. Pior, aprofunda-se. “O que estamos vendo é que a polícia em vez de repensar suas práticas passou a  intensificar a repressão nas manifestações. Desde o aumento no orçamento para compra de armamentos até a sofisticação de novas táticas.

Táticas inclusive condenadas pela ONU e pela OEA. E todo esse cenário diz respeito também aos comunicadores, que têm o papel fundamental de trazer visibilidade à manifestação. Quando se fere um comunicador, se fere a sociedade como um todo. Ao deter, ao agredir, ao exigir que os cartões de memória sejam apagados, a intenção clara é que a população não conheça a atuação policial”, falou Camila Marques, da Artigo 19.

“Temos 300 casos só de 2013 para cá. Desses, 214 foram protagonizados por policiais militares. Não inclui aí seguranças privados nem guardas municipais ou legislativos nem manifestantes. São 71,3%. Quando pegamos só São Paulo, 85% das ocorrências foram cometidas por policiais”, disse Guilherme Alpendre, da ABRAJI.

“As estatísticas provam um recrudescimento. Caímos do ‘livre’ para o ‘parcialmente livre’ na classificação de alguns organismos internacionais. Para o Repórteres sem Fronteira, despencamos da 54ª para a 111ª posição”, declarou Vítor Blota, do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

O que explica isso? Por que a polícia tem agido de forma deliberada contra a imprensa? Há um fundo político nisso tudo? Por que em determinadas manifestações a corporação é amistosa e faz selfies e em outras já chega com sangue nos olhos e dedo no gatilho? Olaya Hanashiro, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também levanta essas dúvidas:

“A própria atuação da polícia é muito contraditória. Ora é zelosa e respeitosa com os manifestantes, ora atua com excessivo rigor e um uso desproporcional da força. O que nos leva ao questionamento preocupante sobre a partidarização. Qual a orientação que a polícia está recebendo apara agir assim? Há critérios ideológicos e partidários?”, disse ela que é doutora em Ciência Política pela London School of Economics and Political Science (Government Departmant-LSE).

Ainda que o motivo da ação não seja questionar o uso dos armamentos ditos não-letais (isso já está em andamento em outra ação) e sim o cerceamento ao trabalho de jornalistas, o protocolo de procedimentos da polícia também está na mira das entidades de direitos humanos já que, além dos abusos, existe a conivência hierárquica.

“Há muitos meses apresentamos uma representação junto ao MP questionando sua missão no controle dos abusos e pedimos que ele atue exigindo que a Polícia Militar disponibilize publicamente os procedimentos operacionais padrão em casos de manifestação popular. O artigo 37 da Constituição impõe essa publicidade, mas ao contrário disso a PM é toda blindada em documentos de acesso restrito, o que impede a população de se informar sobre como a polícia deve se comportar. Até hoje não temos resposta”, declarou João Paulo de Godoy, assessor jurídico da Conectas.

Sem dúvida esse sigilo todo é muito conveniente e permite atuações tão distintas em manifestações. Uma hora precisa informar o trajeto, na outra não precisa. Às vezes deixa o ato sair em caminhada, às vezes não. Não pode fechar vias em algumas oportunidades, mas uma determinada turma pode sem problema algum. O governador veta o uso de armas à tarde, mas a noite lá estão elas iluminando os céus da avenida Consolação. Isso deixa os manifestantes reféns da simpatia ou não da polícia pela pauta do protesto bem como dificulta enormemente a atuação da imprensa.

Diante da carnificina de 2013, sugeriram que nós da imprensa deveríamos estar visivelmente identificados para que os soldados pudessem nos distinguir com maior facilidade. Isso nunca evitou nada; Borrifam spray de pimenta e lançam bombas à esmo, o que nos obriga ao uso de EPIs (equipamentos de proteção individual) mas já apanhei por estar ‘mascarado’; Já fui agredido por estar no meio dos manifestantes e estando fora também. Qual o critério?

“Vemos essa violência contra jornalistas com muita preocupação. Jornalistas estão sendo agredidos, detidos ilegalmente, com seus equipamentos danificados e seus registros arbitrária e abusivamente deletados. Até mesmo a simples realização de um Boletim de Ocorrência foi negada a vários profissionais que se dirigiram à delegacia depois das agressões. Essa violência é porque eles registram por meio de fotos, vídeos, gravações as ações abusivas das forças policiais.

A polícia não quer que ação seja registrada porque sabe que está errada, que age muitas vezes como agente provocador. Eu mesmo presenciei esses abusos. Estava no último dia 4 no Largo da Batata, no encerramento de uma manifestação totalmente pacífica, e vi a Tropa de Choque jogar bombas sobre a multidão sem nenhum motivo”, falou Paulo Zocchi, presidente Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.

Ao final da longa sessão, na qual cerca de 20 depoimentos de jornalistas agredidos foram coletados, o fotógrafo Sérgio Silva perguntou-me se eu estava otimista com a iniciativa. Depois do descalabro das recentes decisões judiciais desfavoráveis aos casos dele e do também fotógrafo Alex Silveira que perderam a visão após terem sido atingidos por balas de borracha e ainda assim foram considerados culpados pela circunstância ou da anulação dos julgamentos dos policiais que participaram do massacre do Carandiru, é inegável a dificuldade em manter o otimismo. Até porque, se a polícia parece agir de forma tendenciosa, o judiciário também não colabora.

É sempre triste mencionar a tragédia fatal do cinegrafista Santiago, porém é relevante observar a diferença de tratamento dado. Quando a origem do ataque é um manifestante, criminaliza-se. Quando o autor foi um agente da polícia, o jornalista é que assumiu o risco. Não se trata de pessimismo, caro Sérgio, mas como diria MV Bill, ‘o baguio é doido’.