A PM da Bahia descobriu como lidar com a violência: criminalizou as tatuagens

Atualizado em 18 de maio de 2015 às 13:40
A capa da cartilha da PM da Bahia
A capa da cartilha da PM da Bahia

 

 

Ter no corpo a frase “amor, só de mãe” pode não ser uma boa ideia na Bahia. Uma vez abordado por um policial, sua declaração à flor da pele pode lhe valer a pecha de estuprador saído da cadeia. Isso se o agente da lei em questão leu a Cartilha de Orientação Policial de Tatuagens: Desvendando Segredos (http://goo.gl/EJtlh8).

Publicada em 2012, a cartilha é fruto do trabalho de pesquisa do então tenente Alden José Lázaro da Silva, hoje capitão da PM, e possui os selos oficiais do estado da Bahia e da Polícia Militar da Bahia na sua ficha técnica, além de expediente contendo o nome do ex-governador Jacques Wagner.

Tendo a forma de um catálogo ilustrado, que junto com verbetes explicativos da relação entre modalidades de crimes e desenhos tatuados, pretende ser um relatório em retratos da criminalidade presente às penitenciárias do estado e do país, depois de analisados “mais de 30 mil fotos/documentos”.

A assessoria de comunicação da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia declarou que o texto foi considerado interessante pela secretaria, que imprimiu uma tiragem distribuída para policiais e guardas metropolitanos. Segundo o capitão Alden, “é utilizado oficialmente por centenas de instituições policiais e penais. Já teve mais de 80 mil visualizações na internet e foi visto por mais de 10 mil agentes de segurança durante encontros/palestras.”

Esse almanaque é usado pela terceira polícia mais violenta do país, atrás somente de São Paulo e Rio. O texto é muitas vezes ambíguo na descrição das tatuagens e dos crimes que estariam ligados a elas:

Duende/Gnomo: Identifica um possível usuário/traficante de drogas

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Se pretende ser explicativo, o uso da barra entre usuário e traficante, generalizando e fundindo duas posições distintas, deixa muita abertura de interpretação em um exemplo prático, que se extremado, pode gerar um usuário tratado violentamente numa abordagem na qual foi confundido com o traficante, por receio de sua periculosidade. Mas o fato é que violência nenhum dos dois deve sofrer.

Em outros verbetes, a ambiguidade e a relativização continuam:

São Sebastião: Quando o indivíduo praticou crimes contra a liberdade sexual o indivíduo é obrigado a fazer. Também é associado a liberdade ou a vontade de sair do cárcere

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A definição põe em um mesmo nível ações completamente diferentes entre si. Reforçado pelo fato do verbete estar abaixo de um subtítulo que diz  “Tatuagens que identificam presos homossexuais E/OU que foram estuprados” como se significassem a mesma coisa.

Diabo: Matador/Pistoleiro. Pode indicar também que o indivíduo tem pacto com o Diabo

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Lá se foi, além da racionalidade, o benefício da dúvida e o direito que determina que todas as pessoas são inocentes, até prova em contrário. Seguindo essa lógica, o que pode acontecer quando um jovem soldado da polícia baiana, que acaba de ler o manual publicado e distribuído por seus superiores, vê um homem “em atitude suspeita” com uma tatuagem de Nossa Senhora Aparecida, que segundo a cartilha pode “representar um latrocida, um estuprador ou mesmo fé/proteção”?

Se das 3 alternativas apresentadas, duas representam um elemento perigoso para a sociedade, um gesto mais drástico pode ganhar uma legitimidade torta, para somente depois vir á tona a triste constatação de que o suspeito era somente um devoto.

A cartilha tem uma versão digital usada em grupos de discussão e blogs ligados a policiais, além de várias entrevistas e depoimentos do autor. O texto remete aos estudos de Cesare Lombroso, médico psiquiatra italiano do século XIX que “provou” que criminosos tinham características físicas específicas.

Não é algo novo no estado da Bahia: conta-se que na Guerra de Canudos a cabeça de Antonio Conselheiro foi enviada ao médico Raimundo Nina Rodrigues, estudioso das teorias de Lombroso. A cabeça de Rodrigues está no IML soteropolitano.

Rodrigues, sob a ótica do positivismo criminológico, registrou em seu ensaio “A loucura epidêmica de Canudos: Antonio Conselheiro e os jagunços” (1897), suas observações sobre o crânio do profeta do sertão a seguinte, e ao que parece desapontada, passagem:

… nenhuma anomalia que denunciasse traços de degenerescencia: é um craneo de mestiço onde se associam caracteres anthropogicos de raças differentes. Só relataremos aqui, pois, as indicações mais importantes. E um craneo dolichocephalo e mesorrhyno, quasi sem dentes, e com notavel atrophia das arcadas alveolares. Tem uma capacidade de 1670 cc. (…) E pois um craneo normal. Esta conclusão, que está de accordo com as informações recolhidas sobre a historia do alienado, confirma o diagnostico de delirio chronico de evolução systematica”. 

O manual de conduta gera uma pergunta: não seria ele um dos sintomas do despreparo e violência sistemáticas da PM da Bahia?

Por mais salvaguardas que o texto do Capitão Alden José procure fazer, como colocar que “nosso objetivo não é discriminar pessoas que possuam tatuagens”, ele faz a perigosa constatação: “Por trás de uma simples aparência artística, alguns tipos de tatuagens representavam um complexo sistema de representações criminosas”.

E mesmo ponderando que ”as informações desta cartilha servem apenas como mais uma ferramenta para facilitar o seu [do policial] trabalho de reconhecimento“, o uso de tal cartilha é tão arcaico quanto a imagem das duas armas que atravessam o brasão da Polícia Militar da Bahia, a terceira que mais mata no país.