A PM e a arte de matar inocentes em perseguições de carro sem sentido

Atualizado em 4 de novembro de 2014 às 12:49

 

edcarlos
O carro de Edcarlos

 

Edcarlos Santana Araújo tinha 26 anos e trabalhava como maquinista da CPTM. Dirigia seu carro quando foi abordado por um homem de 26 anos, um adolescente de 17 e uma garota de 15.

Curiosamente já fui assaltado e tive o carro levado por uma formação idêntica há alguns anos, o que me faz deduzir que não sejam os mesmos mas chama a atenção o perfil do trio. Vamos em frente.

Edcarlos foi colocado no porta-malas de seu próprio veículo que, durante uma estacionada em uma rua da Vila Leopoldina, em São Paulo, chamou a atenção de policiais. A partir daí ocorreu uma perseguição “a mais de 140 km/h na marginal e mais de 160 km/h na rodovia Anhanguera”, segundo a própria polícia.

Na altura do km 14, o carro bateu forte. Edcarlos, no porta-malas, morreu na hora. Os três assaltantes saíram sem ferimentos graves.

Está correto sair em disparada atrás de um carro suspeito? Segundo a própria PM, não: “o correto é promover um cerco ao veículo suspeito com a ajuda de outros carros da polícia acionados via rádio, e não fazer uma perseguição.”

Não preciso ser perito nem fã do CSI para saber que nada disso aconteceu. Uma única viatura se incumbiu da tarefa, não fechou a frente do veículo suspeito, parou atrás daquele (o carro fugiu, certo?) e depois “correu atrás do prejuízo” pela cidade.

Não dava para saber que havia um refém no porta-malas? Ok, não dava para ter certeza, mas em São Paulo, no ano de 2014, é pedir demais considerar essa possibilidade? Não era necessário nem estar ocultado naquele cativeiro de lata. O refém poderia muito bem ser um dos ocupantes sentados no interior do carro, a inconsequência da abordagem teria sido a mesma.

Por que a perseguição? O bem material precisa a todo custo ser resgatado? Mesmo que não existisse refém algum a bordo do carro, empreender uma correria alucinada como essa dificilmente não resultará em um acidente que poderá envolver outros carros, outras pessoas, ciclistas, pedestres, motoqueiros…

A incapacidade de se levar isso em conta diz muito sobre o modo como a polícia atua.

Poucos dias antes da tragédia envolvendo Edcarlos, um outro veículo roubado e em fuga atropelou um PM, o soldado Felipe Costa e Silva, que se colocou à frente do carro e por muita sorte sobreviveu. Ele tentou parar o veículo a tiros. Em entrevista a uma emissora de TV, o PM agora visto como herói declarou: “Na hora não me passou nada pela cabeça”.

Opa, que treinamento é esse? Certamente não passou nada também na cabeça do policial que atirou e matou um camelô no centro de São Paulo recentemente.

Mas voltemos ao soldado Felipe: ele atirou contra o carro (por acaso sabia se havia refém lá dentro?); jogado para cima pelo atropelamento e de arma em punho poderia ter disparado involuntariamente e acertado algum inocente que estivesse nas proximidades; e novamente ocorreu o risco de mais um acidente caso o motorista larápio perdesse o controle e fosse em direção à calçada ou entrasse na rota de outro carro.

Tudo isso por quê? Por que o bem material está colocado em posição superior à vida. Não é de hoje que a atuação da polícia é questionada com relação a isso. Ela existe para proteger patrimônios, sejam públicos ou privados. Só eu percebo uma inversão de valores?

Segundo o delegado do 33º DP (Pirituba), o trio deve responder por roubo, resistência e homicídio com dolo eventual pois “assumiu o risco” de matar. Mas só os ladrões assumiram esse risco? Essas perseguições só caem bem em filmes de Hollywood. É preciso muito cuidado para que sentimentos nobres de cumprimento do dever não mascarem a falta de procedimentos, o despreparo, e ao cabo de tudo isso, outros crimes e injustiças. De boas intenções o inferno está cheio.