A saída da crise será o incremento do Estado de exceção. Por Aldo Fornazieri

Atualizado em 21 de novembro de 2016 às 11:57

Captura de Tela 2016-11-21 às 12.53.07

Publicado no JornalGGN.

POR ALDO FORNAZIERI

 

Não existe um conceito preciso de “convulsão social”. Uma de suas aproximações parece indicar que ele abriga a existência de uma situação na qual o governo não governa e os vários setores sociais se põem em movimento sem uma direção clara e definida, cada um lutando pelos seus interesses particulares. Em face da ausência de uma direção geral, alguns movimentos testam os limites da legalidade, tanto à direita quanto à esquerda. Outros ingredientes das convulsões sociais importam a existência de crise econômica, de desemprego elevado, de desesperança, de medo quanto ao futuro, de redução de consumo, de violência social generalizada, de crise do Estado, de incapacidade dos partidos tradicionais e dos governos de apresentarem saídas para as crises conjuminadas, desmoralização das instituições e de crescente desobediência civil.

Na presente crise brasileira existem vários desses sintomas. O bloco de forças que vinha dando a direção política ao país nos últimos anos, liderado pelo PT com o apoio do PMDB e secundado por outros partidos centristas, faliu. O golpe contra o governo eleito levou ao poder um bloco que tem, na essência, dos propósitos: 1) salvar políticos corruptos, livrando-os da Lava Jato e garantindo-lhe o foro privilegiado onde o STF dormita e mata os processos; 2) continuar assaltando o Estado e os fundos públicos com esquemas de corrupção, com altos cargos e com privilégios. Trata-se de um bloco que não têm unidade de propósitos a não ser jogar o peso da crise nos ombros dos mais pobres. O golpe levou ao poder um governo que as manifestações de rua – tanto as verde-amarelas quanto as vermelhas – não queriam.

A ideia de que bastava substituir um governo impopular para que as expectativas melhorassem e a economia reagisse, fracassou. O fato é que esse governo não tem nada a oferecer às maiorias sociais a não ser mais arrocho, desemprego e perda de direitos. A recessão já levou 10% da renda e elevou o desemprego para 12%. Trabalhadores informais perderam clientes e estão cada vez mais pobres. As políticas públicas e sociais sofrem suspensões e cortes.

Esses ingredientes, somados à indicação de uma reforma da previdência que cria embaraços às aposentadorias, vem disseminando a avaliação popular de que o governo Temer é pior do que o governo Dilma. Acrescente-se que o governo é percebido como corrupto porque, de fato, seu núcleo duro o é. Sem legitimidade, sem carisma e sem energia, o presidente da República assume cada vez mais uma dimensão fantasmagórica, de ausência e de desgoverno. Sua equipe econômica vem perdendo oxigênio e suas propostas de reformas sofrem interdições crescentes do cenário político.

Crise de Hegemonia

O que há no Brasil é uma evidente crise de hegemonia: o governo e os grupos dirigentes não conseguem governar e não podem contar a lealdade da sociedade. Depois de uma certa passividade social decorrente do golpe e da derrota das forças democráticas e progressistas nas eleições municipais esta passividade começa a ceder lugar a uma atividade de grupos e movimentos à esquerda e à direita. Dada a desmoralização dos partidos em geral, os primeiros agem a partir de suas auto-organizações com ocupações, greves e atos de resistência. Os segundos, a partir de uma ideologia e de um líder – o deputado Bolsonaro – passam a atacar tanto os movimentos sociais quanto as instituições, a exemplo dos “desocupa já” e da tomada da Câmara dos Deputados em nome do apelo à ditadura e da invasão da Assembléia Legislativa (RJ) com quebra-quebra e saudações ao Bolsonaro. Com o desgoverno no Brasil e com a vitória de Trump nos Estados Unidos, esses grupos de direita sentem-se autorizados a agir cada vez com mais ousadia e violência. Os movimentos sociais autônomos de um lado, e os grupos de direita de outro, penetram nos espaços vazios deixados pelos partidos, pela sua incapacidade de dirigir, pela sua perda de legitimidade e pela sua falência programática.

Mas há uma terceira frente de reação à crise e ao desgoverno. Ela vem de dentro do Estado e hoje aglutina as carreiras típicas como o Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal e setores da Receita Federal. Na medida em que nem o presidente da República e nem o Congresso são capazes de produzir mediações de poder e dirigir a sociedade, o Judiciário penetra cada vez mais nas fendas desse vácuo e busca produzir uma mediação pela lei (não pela política), interpretada discricionariamente pelos juízes a partir de cada fato particular, impondo um Estado crescente de excepcionalidade. Não poderia ser diferente: se a lei perde seu caráter técnico e passa a ser instrumento de mediação dos conflitos políticos e sociais ela vem marcada pela vontade, arbitrariedade e discricionalidade de seus agentes. Esta frente, se a crise se agravar, poderá ter, amanhã, o apoio das polícias militares e das Forças Armadas.

Um futuro sombrio

Nesta crise de hegemonia, caracterizada por Gramsci como aquele interregno em que o “velho está a morrer e novo ainda não pode nascer”, a evolução mais provável não é a revolução. Pelo contrário, é a reação e o incremento do Estado de exceção. Do ponto de vista das saídas políticas, a saída mais provável é à direita. Esta é uma tendência no mundo ocidental: a não funcionalidade das democracias e a falência dos partidos de centro e centro-esquerda joga as massas desempregadas e os trabalhadores para a direita.

Em parte, Trump venceu por esta razão. Na França, os trabalhadores estão se deslocando para a Frente Nacional de Le Pen. Nas eleições de Berlim, o partido neonazista chegou conquistou pela primeira vez cadeiras no parlamento. Na América Latina há uma ascensão da centro-direita. As primaveras árabes se afogaram no sangue derramado por novas ditaduras. A Europa está mergulhada numa crise humanitária que dissemina reações nacionalistas, xenofobia, racismo e violência contra os refugiados e imigrantes. Trump prega deportações e construção de muros. A Grécia está sendo obrigada a se vergar diante da troika pagando sua imensa dívida.

Setores de esquerda, principalmente intelectuais, enganam e iludem acerca da avaliação do nosso tempo. Uns sugerem que o amanhã não vai ser um inverno. Outros dizem que há uma revolução invisível. Aqui no Brasil incensa-se a energia da juventude, das mulheres e dos novos movimentos sociais. O fato é que as esquerdas e as forças progressistas estão desorganizadas, desorientadas e sem estruturas de poder. Nada indica que dessas situações críticas emirjam pontos de ebulição revolucionária. Pelo contrário, os imensos poderes estocados, se necessário, reagirão pela discricionalidade da lei e pela força para reordenar a ordem do capital.

O Brasil vive um momento perigoso e vemos aparecerem “uma grande variedade de sintomas mórbidos”. Que não hajam ilusões: o Occupy Wall Street não conseguiu dar a vitória a Bernie Sanders e o Podemos fracassou na Espanha. É verdade que aqui as frentes de luta são muitas, diversas e plurais. Mas elas estão mergulhadas nos seus particularismos, inabilitadas a uma unidade em torno de uma agenda, carentes de estratégias para enfrentar esse momento de impasses e de ausência de rumos. Se não houver uma reinvenção de rumos, de métodos, de paradigmas e de formas, amanhã, esses jovens, essas mulheres, esses lutadores voltarão para a normalidade da vida cabisbaixos e resignados, com o gosto amargo das ilusões perdidas. Por isso é melhor encarar com sobriedade e dureza os perigos e advertências, ser modesto nas esperanças e humilde para perceber que o suposto poder de cada um é efêmero e que a unidade gera mais força e energia.