Com uma relação de 200 candidatos por vaga, a seleção para carreira diplomática é uma das mais difíceis do país. A concorrência faz com que candidatos participem do certame mais de uma vez e invistam até 30 mil reais por cinco meses de curso preparatório.
No caso do médico Mathias Abramovic, soma-se a esses esforços o velho jeitinho brasileiro. O carioca de 38 anos, branco, olhos claros e com um fenótico que não o expõe a situações de racismo vai recorrer às cotas raciais pela segunda vez na disputa a uma vaga no Itamaraty. Ele tentou em 2013, quando causou polêmica ao se autodeclarar negro por ter a bisavó paterna negra e avós maternos pardos.
O Ministério das Relações Exteriores adota as cotas desde 2010, seguindo o critério de autodeclaração. Como a regra não prevê nenhuma outra forma de análise para determinar se o candidato é negro, a princípio não há ilegalidade da atitude de Abramovic.
Quanto à moralidade é outra história. As cotas raciais para ingresso nas universidades e no serviço público federal são formas de reparar parte dos prejuízos herdados pela população negra devido aos três séculos de escravidão e décadas de ausência de políticas públicas após a abolição. Não são atalhos jurídicos à disposição dos espertalhões.
O pior é que essa história de branco se afirmar negro em concursos nem é exclusividade de Abramovic. No último certame para a Polícia Federal, pelo menos 27 candidatos brancos usaram as cotas e foram aprovados na primeira fase da disputa. Segundo uma amiga ativista do movimento negro, há informações de estudantes recorrendo à prática para ingressar nas universidades federais.
Contudo, esses abusos não podem ser usados para questionar a eficiência das políticas de cotas. Indicam, na realidade, a necessidade de proteger o sistema dos indivíduos que colocam o estômago na frente da moral.
“É preciso um sistema de questionamento. Claro que alguém dirá que isso seria um “tribunal racial”, nome forte e polêmico, mas o STF já sinalizou que uma comissão de averiguação é saudável e oportuna. Muito pior do que ter uma comissão de averiguação será ver nórdicos, japoneses e outros não contemplados pelas cotas valerem-se do artifício da autodeclaração. Pior do que colocar alguém que não faz jus à cota é abrir espaço para que os malandros ingressem no serviço público”, escreveu o diretor da ONG Educafro, Frei David Santos, em texto assinado em conjunto com o juiz federal Willian Douglas.
Só um mecanismo institucional garante que as cotas cumpram o papel de beneficiar a população negra. Deixar como está, ao sabor do bom senso, permite que outros abramovics se disfarcem de silvas, souzas, nascimentos nos outros concursos que virão.