Aragão: “Se tem um bicho medroso é o tal do juiz, tem medo de desagradar os superiores. Para baixo ele pisa, para cima faz salamaleque”

Atualizado em 20 de novembro de 2017 às 18:02
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Publicado no Nossa Ciência

POR MÔNICA COSTA

O então ministro da Justiça quando o Governo da presidenta Dilma Roussef sofreu o impeachment nomeia aquele processo como um golpe e o define como uma ruptura da ordem constitucional e como uma trapaça perpetrada contra o Brasil. Em sua entrevista ao Nossa Ciência, Eugênio José Guilherme de Aragão, que recentemente aposentou-se como procurador da República, afirmou que a justiça brasileira é elitista e falou também das relações “amalgamadas” com o Ministério Público. Aragão, que é professor adjunto na Faculdade de Direito, na Universidade de Brasília, analisou a formação acadêmica jurídica brasileira, classificando-a como distante da realidade.

Nossa Ciência: O senhor tem dito que o processo, pelo qual o Brasil passou, quebrou a liturgia do cargo da Justiça. Quando essa liturgia se quebra, há conserto? O que pode ser feito para se voltar a ter confiança na justiça?

Eugênio Aragão: A liturgia do cargo é uma garantia para os atores da Justiça de uma certa intangibilidade. Essa liturgia irradia ao ator da Justiça uma credibilidade, uma certa majestade que automaticamente afasta as partes do conflito da pretensão de querer incluir esse ator dentro do seu conflito. O problema é que um juiz lida anualmente com milhares de processos e sempre em cada um desses processos vai haver um frustrado. O magistrado tem a tendência de acumular com o passar do tempo, cada vez mais desafetos, que são aqueles que foram frustrados nas suas pretensões em juízo e se o magistrado não tiver essa aura de majestade, de respeitabilidade que a liturgia do cargo transmite, ele se equiparará às partes em conflito, ele descerá do seu pódio. Então é natural que ele se expõe a ser alvo de violência, porque se ele se comporta feito um moleque, feito um litigante raivoso, ele vai ser tratado como tal e vai acabar levando um tiro na testa, ele arrisca sua integridade física.

NC: Como deve ser a atuação do juiz?

EA: A liturgia é algo profundamente democrático, porque é um respeito às instituições do Estado de Direito. O magistrado não deve dar opiniões polêmicas, nunca deve falar de público sobre suas causas porque ele acirra os conflitos, não deve expor as partes, deve cultivar um baixo perfil, a discrição, a tranquilidade, a serenidade. Só assim ele será levado a sério como um juiz imparcial. Infelizmente, no Brasil, o judiciário brasileiro tem uma coisa muito curiosa. Ao mesmo tempo em que ele é, como poder, provido de enormes poderes, muito mais do que qualquer um, comparado com outros países, ele é um poder altamente hierarquizado e os juízes são extremamente medrosos – se tem um bicho medroso é o tal do juiz, tem medo de desagradar os superiores. Para baixo ele pisa, para cima ele faz salamaleque.

NC: A que se deve esse medo, se é uma carreira absolutamente respeitável?

EA: É porque todo juiz, em última análise, almeja subir, e subir depende dos seus pares na instância superior, então ele tem que agradar a esses pares, eles, os juízes, acabam sendo permanentemente subalternos. Ao mesmo tempo aqueles que estão no topo da carreira, para chegarem lá, fizeram tanto salamaleque ao longo de sua vida que acabam tendo a sua coluna vertebral extremamente elástica. Em que eles se miram para lhes dar segurança? Na mídia. É a mídia que hoje faz a imagem do juiz, do magistrado, principalmente em sua cúpula e isso destrói completamente essa ideia do magistrado imparcial. Isso faz com que o magistrado se afaste de sua liturgia para deturpar, deformar essa liturgia em puro autoritarismo, em prepotência, arrogância.

NC: Na Constituinte foi dado um poder à Justiça, achando-se que ela ia defender o lado que nunca é defendido. Mas na prática…

EA: Ele se mira na imprensa e em relação aos demais (poderes) é extremamente arrogante e prepotente. Desfazer isso vai ser difícil porque as corporações estão muito enraizadas dentro do nosso estado, mexer com elas é quase uma guerra civil, arrancar essas corporações dos seus esteios exige desprendimento de muita energia e não sei se até hoje chegou o governo que tem essa energia toda. A Justiça acaba se estabelecendo como poder maior dentro da República porque tem em suas mãos os deputados e senadores e o Executivo e isso faz com que essa Justiça cresça muito além dos limites que lhe foi imposto pela Constituinte.

A justiça no Brasil sempre foi elitista, mas durante o período da Ditadura Militar foi reduzida a um poder burocrático, homologatório. Estava sob a chibata dos generais. Os magistrados que não se submetessem à ordem posta, eram submetidos ao AI-5, podiam ser cassados e mandados para casa. Havia uma enorme politização do uso da Justiça, os militares faziam uso político da Justiça e em 1977, o presidente Geisel fechou o Parlamento, editou o tal do Pacote de Abril e fez uma ampla reforma no poder judiciário, cortando as suas asas. Quando veio a Constituinte de 1988, a Justiça se apresentou como vítima da Ditadura. Eles queriam voltar a ser empoderados e de, certa forma, a Justiça foi vista, naquele momento, como um contrapeso a um (poder) Executivo poderoso demais, que tinha na Ditadura e assim houve uma tendência de se colocar a Justiça no centro das coisas, mas colocar a seu lado um novo órgão, esse novo Ministério Público (MP), que seria como um interlocutor entre o Estado e a Sociedade, dentro dos parâmetros da Lei da Ação Civil Pública.

Se esperava desse MP que ele tivesse a capacidade de se fazer como contraponto a uma Justiça que fosse empoderada e que se pudesse tornar arrogante, mas o que aconteceu foi precisamente o contrário. O Ministério Público, ao longo dos anos, foi se amalgamando com a Justiça, quase que criando uma cumplicidade com a Justiça. O MP conseguiu ser reconhecido como equivalente ao judiciário; os procuradores e os promotores conseguiram ter os mesmos direitos dos juízes e com isso foram acolhidos pelo Judiciário. Houve como que uma conquista do Ministério Público pelo judiciário e com isso, em vez de ser o contrapeso ao judiciário, o MP acabou fortalecendo esses aspectos da prepotência, do excesso de poder, que era tudo o que a Constituinte temia.

NC: Quando esse processo tomou forma com essa clareza que o senhor define?

EA: Isso aconteceu principalmente depois do processo do impeachment de Collor de Melo. A Procuradoria (Geral da República) usou Pedro Collor e praticamente foi um dos vetores mais poderosos para a derrocada do Governo Collor e isso deu ao Ministério Público uma nova dimensão, uma dimensão de um poder que pode, eventualmente, calar um outro poder, foi colocado num nível de igualdade com os demais poderes. Isso faz com que o MP vá abandonando o seu papel de intermediário entre a sociedade civil e o estado, para assumir o papel hegemônico no estado, de querer tomar para si o poder porque isso fortalece a corporação como um todo e esse fortalecimento tem como consequência a sua valorização e também os seus ganhos maiores. O Ministério Público hoje está no topo da cadeia alimentar do serviço público, junto com o Judiciário e é uma instituição extremamente cara, assim como o Judiciário é extremamente caro. Pode ser pouco em relação ao Orçamento Geral do Estado, mas é muito em relação ao PIB, se comparado com outros países.

NC: Caro é uma coisa que não vale o que se paga por ela?

EA: Sim, porque há exageros, há desperdícios, há uma tendência do MP e da Justiça ficarem só olhando para seu próprio umbigo; seus atores vivem numa redoma de bem-estar social que faz com que eles esqueçam o que está lá fora. Em qualquer cidadezinha, por exemplo, do interior de Goiás, as casas podem ser de pau-a-pique, o vilarejo pode ser pobre, mas o Fórum é de vidro fumê e sua fachada é de granito e tem ar condicionado central lá dentro. Isso é a imagem do judiciário. Pode não ter dinheiro para o hospital, para o posto de saúde, mas o Judiciário está com toda a sua pompa e majestade.

NC: Tanta gente trabalhando numa única direção não se melhora a qualidade do produto final?

EA: Não. O que acontece é que se reage à pressão de quantidade. Hoje o STJ (Supremo Tribunal de Justiça) tem perto de 370 mil processos por ano e o STF (Supremo Tribunal Federal) tem algo entre 120 e 150 mil processos por ano. Em nenhuma corte suprema do mundo há esta carga de processos. Em vez de pensar o sistema como um todo, faz-se o puxadinho, coloca-se 50 funcionários para trabalhar com um ministro, para dar conta dessa carga processual, só que os votos acabam sendo de baixíssima qualidade, são relativamente curtos, superficiais, cheios de frases feitas, de preconceitos. Por exemplo, num sistema como o alemão, em que existe uma matriz de casos, é muito difícil um juiz de Hamburgo decidir substancialmente diferente de um juiz de Munique, porque os operadores aprendem suas matrizes de casos desde a época da faculdade, sabe como resolver um caso, à luz da jurisprudência dominante.

Na Alemanha, a parte, dificilmente, vai para o recurso, para a apelação porque ela sabe que não adianta, as instâncias vão decidir de forma igual. Se ele perdeu, ele perdeu e se ele for indo às outras instâncias para cima, além de correr o risco de pegar uma multa porque o seu processo não vai ser admitido, é meramente protelatório, ele não vai mudar o seu destino, então isso faz com o que realmente chega lá em cima é de outra qualidade. Um juiz da maior corte alemã (Tribuna Constitucional Federal) tem por ano 200 processos. Assim, ele pode se dedicar a redigir 100, 200 páginas, profundas porque essa é a mais alta corte do país e olhe que são 200 e tantos juízes nessa corte.

NC: Aqui não é assim?

EA: Não. Aqui no Brasil, nossa formação jurídica é do Século XVIII, Século XIX, aquela formação jurídica enciclopédica, em que o sujeito aprende tudo um pouquinho: Sociologia, Ciência Política, Economia. E esse menino, na hora que sai da faculdade, se vê como um luminar. Ele não sabe de nada de matriz de caso. Na hora em que ele vai para um cargo de juiz, depois de recém-formado, se acha um sábio e não tem matriz de caso para segurá-lo, então ele decide o caso conforme a sua cabeça. Só que o juiz do lado também decide conforme a sua cabeça e aí dá contradições entre aquilo que decidiu o juiz de uma vara e o que decidiu o de outra vara. Aquele que ficou com a pior decisão vai ficar insatisfeito e vai recorrer para a segunda instância. Na segunda instância tem uma turma que diz ‘A’ e outra turma que diz ‘Não A’ e aí sempre vai um insatisfeito que vai querer ir para a terceira instância, da terceira instância, para a quarta instância. Então, uma grande parte acaba chegando lá no final. Isso faz com que os tribunais superiores estejam extremamente sobrecarregados porque eles são, afinal de contas, instâncias para unificar o entendimento, já que os juízes não são capazes de seguir o entendimento unificado.

NC: O que aconteceu em 2016 no Brasil foi um processo regular de impeachment ou uma traição política ou um golpe parlamentar ou uma eleição indireta ou foi tudo isso?

EA: Regular não foi, esse já excluo de antemão, não é regular você usar um instituto previsto na Constituição, deturpando-o pra aplicá-lo para afastar uma presidente da República que não praticou um crime de responsabilidade. Aquilo que qualificaram como crime de responsabilidade foi tirado do bolso do colete pelo Tribunal de Contas União, condenando uma prática que ele sempre tinha consagrado; foi oportunista, foi raivosa, foi hostil, foi confrontativa. Golpe tem vários significados; o golpe pode ser uma ruptura e o golpe pode ser também uma trapaça. Me parece que o que aconteceu em 16 foi os dois, foi uma trapaça e foi também uma ruptura da ordem constitucional.

NC: Quais foram as condições para que ocorresse?

EA: Se a gente olha o processo como um todo, a gente tem que ver que este resultado só foi possível porque houve uma desidratação do centro político no Brasil. O centro político era que desde 1988, melhor, desde 85 era o que garantia a estabilidade dos governos Sarney, Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Collor, quando perdeu o apoio desse centro, foi derrubado. Ocorre que o centro brasileiro há algum tempo, desde o governo Fernando Henrique Cardoso, por vários fatores, vem sendo empurrado para a Direita. Houve uma fragmentação desse centro e, por isso, mais facilmente cooptado pelas forças da reação. Então foi um processo político em que esse centro garantidor da estabilidade foi simplesmente desaparecendo, ele foi desidratado e o Brasil passou para uma enorme polarização. Sem o centro, a Esquerda não governa, não governa. A Esquerda não tem, no Brasil, a densidade político-demográfica para governar sozinha.

NC: Daí o perdão de Lula…

EA: Perdão, o Lula usou isso como retórica. O perdão é uma forma para o povão entender melhor a recomposição de forças. Lula sabe que só tem chance de voltar se houver uma recomposição desse centro. Como esse centro passou para a direita e, bem ou mal, teve presente no golpe, é difícil você recompor essa força sem buscar apoio de pessoas que tiveram envolvidas no golpe, mas que talvez se arrependam do que fizeram ou que pelo menos aquelas que não aceitam o resultado do golpe. Essas pessoas tem que ser trazidas de volta. Esse é um processo absolutamente necessário, já que se a gente não tem capacidade de mobilizar a opinião pública para realmente fazer uma mudança de peso com votos de Esquerda ou eventualmente mobilizá-la para uma ruptura dessa ordem burguesa, então nós temos que trabalhar para melhorar o ambiente político para a gente poder fazer os nossos pequenos avanços. A alternativa para isso seria a Revolução, mas se nós não temos capacidade nem para mobilizar pessoas para um ato de paralização nacional, como é que a gente vai fazer isso? A gente só tem condição de ir negociando com essas forças do centro que, por várias circunstâncias, foram empurradas para a Direita.

NC: A classe média foi de verde e amarelo para as ruas protestando contra a corrupção dos governos do PT. E agora tem uma corrupção amplamente mostrada e a classe média parece não estar muito preocupada com isso. O que houve?

EA: No fundo, o que a gente nota disso é que esse discurso de combate à corrupção é um discurso vazio, porque não é um discurso estruturante. Ele é um discurso para mobilização de opinião pública, com objetivos nitidamente corporativos. Essa classe média se mobilizou a partir de 2013 porque foi pilhada pela mídia, apesar da classe média ter o melhor grau de instrução – vamos falar claramente – a instrução política no Brasil está abaixo da crítica, as pessoas são muito desinstruídas politicamente e isso faz com que elas sejam muito sujeitas aos chamados formadores de opinião e esse bombardeio sistemático da mídia, que começou com o mensalão, praticamente no terceiro ano do governo Lula, 2005 e isso sendo batido todo santo dia, essa massa não teve visão crítica suficiente para entender que estava sendo manipulada.

NC: O senhor disse que o Supremo tem um viés conservador. Entende-se que o PT errou na mão?

NC: Com certeza. Não é que errou na mão, o PT se omitiu em relação ao Supremo, vamos dizer claramente isso. Toda vez que surgia uma vaga no Supremo Tribunal Federal, começava a gincana dos apadrinhados, pessoas começavam a correr para chegar perto das cercanias do Palácio do Planalto, para isso usavam seus apoios e esses apoios iam tentando criar uma tendência no poder decisório favorável ao seu candidato. Não havia por parte do Governo Lula, nem do Governo Dilma uma visão clara sobre um perfil, um estudo de como esse perfil devesse ser, o que se esperava de um ministro, não houve nenhuma sistematização dessa escolha, simplesmente se deixou isso ao sabor dessas corridas desenfreadas dos oportunistas. Quem acabava chegando ao final da corrida não era o mais bem preparado, não era o melhor perfil, mas sim era muitas vezes o mais inescrupuloso. É mais ou menos como numa seleção natural, na natureza vence o que tem mais resistência, o que é mais forte, e é esse o que vencia. E o que era mais forte e tinha mais resistência não significa necessariamente o que tem o melhor caráter, não significa que seja a melhor pessoa, politicamente mais engajada, que seja mais clara nas suas posições. Foi uma mixórdia. Colocou-se de tudo o que é tipo de gente lá dentro, sem visão clara de poder.

NC: Diferente de governos anteriores…

EA: Muito diferente do governo Fernando Henrique Cardoso, que só teve três vagas, o PT teve 13 vagas. O Fernando Henrique Cardoso teve três vagas e soube perfeitamente pinçar com segurança quem ele queria ali. Colocou Nelson Jobim, que era de uma fidelidade canina a Fernando Henrique Cardoso, colocou a Ellen Grace, que enquanto presidenta do Tribunal Regional Federal da 4ª Região foi sistematicamente suspendendo liminares contra a União, portanto apoiando o governo e colocou Gilmar Mendes, que dispensa qualquer tipo de comentário. Colocou ali três pitbulls.