Arte, cultura e censura. Por Joaquim Barbosa

Atualizado em 18 de setembro de 2017 às 8:13

POR JOAQUIM ONÉSIMO BARBOSA, professor paraense, doutorando em Sociedade e Cultura na Amazônia na Universidade Federal do Amazonas.

A polêmica que levou ao fechamento da mostra de arte “Queermuseu” no espaço do Santander Cultural mostra que os poucos que entendem – verdadeiramente – de arte têm voz fina diante de um amontoado de vozes berrantes que nada entendem do que acham que pode ser arte e pode ser mostrado. E, na guerra de vozes, vence o que grita mais ou o que pode encher plataformas de robôs para inflar com censura quando lhe falta bons argumentos.

Dizem que a censura se deu por conta do estardalhaço do MBL e de movimentos de fanáticos religiosos – e se foi, eles devem estar achando que venceram – quando na verdade venceram a nossa ignorância e a nossa hipocrisia; perderam a arte e o bom senso.

Quando, no início do século passado, Anita Malfatti apresentou seus trabalhos à sociedade brasileira – a de São Paulo – o que se viu foram críticas, dos que diziam ser críticos de arte e dos que achavam que sabiam alguma coisa sobre arte. Pesaram os dois lados, principalmente dos cabeças empedradas na ideia de arte congelada, imagem bonita, o belo no belo, quadrado do quadrado, que torna colorido o olhar, que dá afago aos tolos, mas que não choca, não incomoda, não remexe o cérebro, não leva à reflexão.

Naquele tempo, Anita Malfatti também teve sua exposição censurada, fechada antes do tempo e recebeu duras críticas daquele que hoje, se levarmos ao pé da letra seus escritos, deveria ser chamado de preconceituoso e de formatar o modelo de família escravista, principalmente nas obras escritas para o público infantil.

Monteiro Lobato, num duro texto intitulado “Paranoia ou Mistificação?”, teceu críticas ao que não considerava ser arte, porque não ladeava aquilo que ele estava acostumado ver para elogiar, o que não podia ser degustado pela elite paulista. Anita parecia ter perdido a guerra, e Lobato – engrenhado no seu culto português e apoiado pelo governo da época – parecia ter saído vitorioso. Hoje a História e a Literatura contam os fatos e dizem quem realmente venceu.

O sociólogo Zygmunt Bauman nos lembra de que há um tanto de cinismo na nossa sociedade, principalmente daqueles que tentam impor seus gostos à multidão. São os que dizem o que é e o que não é, o que deve e o que não deve, o que cabe e o que não cabe. São os que impõem seus gostos, não pela compreensão do que é belo, do que é arte, mas porque dizem e impõem “isto ou aquilo é belo, isto ou aquilo é arte”.

E não há conversa. Não importa se há coerência e valor no objeto que se está levando em conta. Não importa se através de uma exposição haverá reflexão, haverá alguém que poderá tirar do acre o doce. Importa saber que, se os sapos parnasianos entoaram a mesma música do é, não é, vale o que eu digo que é, isso pode. E se não vale para os olhos e para os gostos dos vendedores de ouro falso, censura-se. Num tempo de massacres midiáticos sem direito ao contraditório, o inocente morre como o culpado.

O que de estranho ou absurdo havia na exposição do Queermuseu que não fosse do nosso conhecimento? NADA. Os artistas que ali mostravam seus trabalhos não retiraram nada de outro mundo a não ser daquilo que vemos diariamente a céu aberto nas ruas, nas casas, nos grandes centros urbanos, até mesmo nos espaços onde puritanos pisam em casca de ovo e dormem no lodo de seus vícios ocultos.

Tudo o que ali era retratado sabemos que é mimese da nossa triste realidade. Talvez praticado por muitos dos que censuraram a exposição. Talvez tenham se “tocado” ao enxergar retratadas em pinturas e em arte as suas práticas ocultas, que cometem longe do olhar das telas e das câmeras. Não gostei, não é arte. Mexeu comigo, censure-se.

Pierre Bourdieu nos fala que a cultura é um veículo de mudança do status quo, um instrumento de navegação para orientar a evolução social humana. Se o objetivo da cultura, para uns outros, em outros tempos, era o de educar – ou adestrar – as massas e refinar os costumes aos moldes dos gostos de uma elite empaturrada, egocêntrica e mesmo emburrecida, mas que achava tudo saber, essa mesma cultura deve ser entendida como um raio que entra pelas frestas sebosas das nossas ignorâncias para nos incomodar, sacudir, remexer com a nossa podridão humana e jogar de dentro o que escondemos como nosso, unicamente nosso.

A arte é esse raio que nos incomoda. Gostemos ou não. Simpatizemos com o que vemos ou não. A arte é arte e serve para chocar mesmo, não para nos trazer paz. Ela, mais do que informar ou divertir, educa e choca. Quem não quer ser incomodado não vá a museus nem visite espaços onde há uma exposição de arte.

Fique em casa assistindo ao filme alugado da Netflix ou então se feche no quarto, pegue seu livro sagrado para achar o versículo que fustigue a crista do seu pecado. Como bem nos lembra Bauman, a cultura, a arte, consistem em ofertas, não em proibições; em proposições, não em normas.