As confissões de Casanova

Atualizado em 7 de abril de 2013 às 13:59

Com a palavra um dos maiores conquistadores de todos os tempos.

David Tennant como Casanova na minissérie da BBC
David Tennant como Casanova na minissérie da BBC

Certa vez, o italiano Giacomo Casanova (1725-98) ouviu a seguinte pergunte de um amigo: “Você já assistiu à ópera de Don Juan?” Ao que ele respondeu: “Se assisti? Eu praticamente vivi tudo aquilo.” Se outra pessoa estivesse dizendo aquilo, poderíamos até achar que era exagero. Mas neste caso, não. Quando Mozart compôs a sua óperaele buscou inspiração nas lendas do sedutor espanhol Don Juan — e nas histórias reais do libertino italiano Casanova. Que, por sinal, estava na primeira fileira na estreia da peça, em 1787.

Casanova foi, sem dúvida, o sedutor mais célebre da história. Ele dormiu com 122 mulheres ao longo de sua vida. Para os padrões atuais, isso pode não parecer tanto. Mas é preciso lembrar que ele viveu na Veneza do século XVIII, quando as garotas prezavam por manter suas “virtudes” intactas, digamos assim. Usando trechos de suas memórias, que possuem mais de 3 mil páginas, montamos uma entrevista fictícia com este que deveria servir de exemplo para qualquer homem do mundo. Confira abaixo.

Senhor Casanova, o que o motivou a escrever suas Memórias?

Minhas memórias foram escritas apenas para consolar-me do terrível enfado que me matava vagarosamente na Boêmia – e o qual, talvez, ma mataria em qualquer lugar, já que, mesmo que meu corpo tenha envelhecido, meu espírito e meus desejos continuam tão jovens quanto antes.

Então elas serviram de consolo?

Sim. Quando me lembro de todos aqueles eventos, me sinto jovem novamente e, mais uma vez, sinto as delícias da juventude, apesar dos longos anos que me separam daquela época alegre.

Sua vida, eu suponho, foi digna de ser relatada.

Uma moça muito digna, certa vez, inspirou-me com o mais profundo afeto e me deu o mais sábio dos conselhos. Se eu o houvesse seguido, e lucrado com ele, minha vida não haveria sido exposta a tantas tempestades; mas é verdade que, nesse caso, não valeria a pena escrever sobre ela.

Se não seguiu os conselhos da sua amiga, sou levada a crer que sua vida foi exposta a muitas tempestades, então.

Agora, tantos anos depois de tudo o que já me aconteceu, penso que eu poderia ter sido muito mais feliz, e sou forçado a admitir que nós mesmos somos os autores de quase todas as nossas desgraças e mágoas, das quais reclamamos sem razão. Ah, é claro que minha vida foi tempestuosa – e, se eu pudesse viver novamente, teria sido mais sábio? Talvez; mas, então, não teria sido eu mesmo.

Então o senhor não se arrepende de nada?

Só me arrependo de não ter dormido com Lucia, quando me hospedei na casa dos Montereale.

Quem era Lucia?

Uma perfeita ingenue; a criadinha camponesa, de modos livres, sem quaisquer afetações ou marcas; uma criança da natureza que se sentava todas as manhãs na minha cama para me servir o café. Tinha apenas quatorze anos, e se apaixonou perdidamente por mim. Ofereceu-me seu corpo intocado – e eu fui tolo o suficiente para recusá-la, supondo que seria covardia me aproveitar de uma mocinha tão meiga.

Então Lucia teve por você uma paixão platônica?

Nem tão platônica assim, na realidade. Quando consideramos uma moça muito inocente para que possamos nos aproveitar plenamente dela, nosso digno cavalheirismo pode se estender até chegar ao sexo oral – sem que tenhamos que tirar a virgindade da moça.

Mas por que se arrependeu por não ter dormido com Lucia?

Porque, pouco depois de minha visita, ela fugiu com o mensageiro dos Montereale, um notório patife que a seduzira. Senti-me culpado. Essa culpa só piorou quando a reencontrei em Amsterdã. Pobre e arruinada, à beira da morte, se prostituindo por um preço horrivelmente baixo. Transtornei-me – e o que me deixava mais infeliz era pensar que ela se lembraria de mim com ódio, como a causa original de seus infortúnios.

Pobre moça!

Eu me orgulhei e me envaideci por ser virtuoso o bastante para deixá-la virgem, mas depois me arrependi, envergonhado daquela minha estúpida contenção. Prometi a mim mesmo que no futuro haveria de comportar-me de maneira mais sábia, pelo menos no que se referisse a esses assuntos.

E certamente o fez.

Claro que sim. Tornei-me um perfeito cavalheiro, a partir de então. E não só um cavalheiro, mas também um homem honesto. Além de desfrutar das alegrias da carne, o homem honesto deve ter certeza de que deixará nas amantes uma recordação positiva de seu encontro, e que a posição delas como mulheres será fortalecida com isso.

Imagino. E, a partir de então, deixou seus escrúpulos em seduzir virgens de lado, não é?

Sim, pois se há um aspecto que possa redimí-lo de seduzir virgens ingênuas é que, dessa forma, as estará salvando de um destino pior, tratando-as de maneira mais gentil do que a maioria, como parceiras sexuais no mesmo nível, e que a partir daí elas usariam seus conhecimentos sobre os homens. Fora isso, é realmente deselegante recusar suas carícias à uma menina que vem até sua cama para submeter-se à elas.

Faz todo o sentido, meu senhor. Agora, você se importaria em desmistificar algumas lendas que rondam sua figura e satisfazer nossa curiosidade? Dizem que o senhor, um dos libertinos mais célebres de todos os tempos, foi expulso do colégio interno ao ser encontrado na cama com um rapaz…

Não pretendo negar. Sempre amei as mulheres, mas soube tirar proveito dos homens. Nunca fiquei constrangido com isso, na realidade. Veja Malipiero, meu primeiro protetor – era belo e garboso, um conhecedor de vinhos e um epicurista; a mente era aguçada por um vasto conhecimento do mundo, tinha a eloquência dos venezianos, e ainda… Vinte amantes! Teresa Immer, uma delas, uma mocinha linda e coquete, frequentou minha cama assiduamente, naqueles tempos. Infelizmente, fomos encontrados e Malipiero desertou-me. Bem, é a vida, não é mesmo?

E ele foi o único homem de quem o senhor tirou proveito dessa maneira, meu caro?

De modo algum. Mas um deles, no entanto, rendeu um capítulo especial em minhas memórias. O nome dele era Ismail, e o conheci em Constantinopla. Era um homem bastante rico, e hospedou-me em seu palácio. Eu tinha apenas dezenove anos, na época. Quando passou-me uma cantada, fui pego de surpresa e defendi-me declarando que não pertencia àquele credo. O bom camarada me levou, então, até um lugar cuja atmosfera era quase mágica, com mulheres nuas e lindas. Eu o olhei e ele estava brincando consigo mesmo. Tal como ele, não me restou alternativa senão fazer o mesmo com o objeto ao meu alcance, a fim de extinguir a chama acesa pelas sereias – e Ismail triunfou ao descobrir que aquela nossa proximidade o condenava a ocupar o lugar do objeto distante, o qual eu não podia alcançar. Eu também tive de aceitar quando ele se voltou em outra posição. Teria sido falta de educação recusar… Eu poderia parecer ingrato, coisa que não faz parte de minha natureza.

É claro que não. Também afirmam que o senhor, por algum tempo, aproveitou-se de uma velha louca e rica que acreditava que o senhor era um feiticeiro que iria engravidá-la…

Ah, é claro! A senhora se refere a uma querida marquesa. Aproveitei-me dela? Isto é relativo. A marquesa e seu círculo de amigos mais chegados tinham planos quiméricos, e ao criar neles esperanças de sucesso, eu também esperava curá-los daquela loucura e acabar com suas ilusões. Iludia-os para  que ficassem mais espertos, e não creio que eu mesmo seja culpado, poiso que me impelia não era a avareza. Eu simplesmente estava pagando pelos meus prazeres com o dinheiro que estava destinado à aquisição de posses que a natureza torna impossível de obter (afinal das contas, eu jamais engravidaria aquela velha!). Eu apenas modificava o uso daquele dinheiro, fazendo-o pagar pelas minhas próprias extravagâncias. E quem poderia me culpar?

Ninguém poderia culpá-lo, naturalmente. Mudando de assunto, meu caro senhor, por que o senhor nunca se casou?

Tenho um bom amigo que nunca se casou, e quando lhe perguntavam o porque disso ele respondia que conhecia as mulheres e sabia que elas nasceram para ser ou tiranas ou escravas, e que ele não gostaria nem de ser tirânico com uma mulher nem de submeter-se às ordens de outra.

Heath Ledger como Casanova no filme de 2005
“O amor é um tipo de curiosidade que, quando satisfeita, desaparece”

Que desesperança!

Oh, deixe-me falar de um outro amigo, para contrabalancear. Blondel foi um de meus mais queridos camaradas, com quem dividi algumas mocinhas. Um dia o bom Blondel se casou, e a partir de então passou a considerar sua esposa sua amante. Dizia que isso mantinha a chama do amor acesa e que, se ele nunca encontrou uma amante digna de ser sua esposa, deliciava-se por ter encontrado uma esposa digna de ser sua amante.

Maravilhoso! Mas, e você?

Eu amei as mulheres loucamente, mas sempre preferi a liberdade; e todas as vezes que estive a ponto de perdê-la o destino me salvou.

O senhor já se apaixonou de verdade?

Inúmeras vezes! Duzentas, mais ou menos.

Duzentas?!

Sim! Sem amor esse grande negócio não passa de algo desprezível. Pobre de quem pensa que os prazeres de Vênus muito valem, a menos que venham de dois corações que se amam e que estejam em perfeita harmonia!

Mas é um número enorme! Bem, algum desses amores durou?

Eu amei muitas mulheres, mas o amor não é nada mais do que um tipo de curiosidade. É isso que me faz ter certeza de que, uma vez que a curiosidade é devidamente satisfeita, o amor desaparece.

Então o senhor nunca amou de verdade…

Não foi o que eu disse! Aconteceu uma única vez, na verdade. Henriette, era o nome dela. Pelo menos é assim que irei chamá-la – pois, sendo Henriette uma dama, não poderia arriscar-me a macular sua reputação. Oh, Deus, quem acredita que uma mulher não é capaz de fazer um homem feliz o tempo todo, durante as vinte e quatro horas do dia, jamais conheceu uma Henriette… É impossível conceber a extensão de minha felicidade quando estávamos juntos.

Como o senhor a conheceu?

Me hospedei, certa vez, em uma pousada. Um capitão húngaro também se hospedou lá, e estava acompanhado de um jovem francês. Um belo dia, decidi convidá-los para tomar café da manhã e pousei meu olhar no acompanhante do capitão – e não tive dúvida que pertencia ao sexo sem o qual os homens seriam os animais mais miseráveis do mundo. Apaixonei-me imediatamente por aquela dama, que era ao mesmo tempo selvagem e aristocrática. Pedi ao capitão a permissão para tomá-la como minha amante, e ele a concedeu.

E, meu caro senhor, esse caso durou muito tempo?

Não, não. Ela estava fugindo de um marido de quem não gostava, mas quando teve que optar entre a minha companhia e a da família, receio dizer que deixou-me imediatamente. “Quem acha que é possível ser feliz a vida inteira não sabe o que fala”, ela me disse um dia. “O prazer, para ser verdadeiro, tem que chegar ao fim.”

Mas o senhor a esqueceu?

Henriette deixou-me, antes de partir, um recado na janela do hotel, “você também esquecerá Henriette”. Lembrei-me de algo que havia lhe dito antes de vê-la partir. “Saiba, madame, que é possível a um francês esquecê-la, mas um italiano, a julgar por mim mesmo, nunca teria esse poder”.

É uma bela história.

Sim, é claro. Cheguei a pensar que havia sido perfeitamente altruísta em relação a Henriette, a deixando partir sem oferecer resistência. Mas, na verdade, o amor sempre torna os homens egoístas, uma vez que todos os sacrifícios que fazem pela pessoa amada são, em última análise, referentes aos seus próprios desejos.

Faz todo o sentido. O senhor tem mais alguma história divertida para contar-nos?

Tenho um conselho a dar aos homens. Sabe, vez ou outra a luz está muito sutil, o ambiente lúgubre não possibilita a visão total, mas… Sempre certifique-se de que é com uma mulher com quem está lidando! Afinal das contas, a noite todos os gatos são cinzentos.

Experiência própria?

Infelizmente! Certa vez, estive em uma carruagem com um jovem conde francês e uma dançarina. Na total escuridão, procurei a mão dela e, depois de beijá-la, coloquei-a entre minhas pernas. A mão cedeu, mas bem no momento crucial, o conde rompeu o silêncio: “Agradeço ao senhor, meu caro amigo, por este aperto de mão italiano, tão cortês e inesperado”, e caiu na risada.

Que desagradável! Imagino o constrangimento que o senhor sentiu!

Não me senti tão constrangido assim, na verdade. Eu e o conde acabamos nos tornando amigos íntimos, posteriormente.

Hmmm… Mas, e em relação à religião? O senhor segue alguma?

É claro! Sou um homem completo, e sou um cristão.

Curioso. Nunca imaginei que fosse católico…

Sou um católico fervoroso! Pois, quando confessamos nossos crimes aos nossos padres, eles são obrigados a nos absolver.

Oh, é claro que havia certa dose de interesse pessoal.

O primeiro motivo é sempre interesse pessoal.

Certamente. Se não se importar em responder, você poderia nos dizer qual foi seu segredo para conquitar tantas mulheres lindas?
         Diz Crébillon, o poeta francês: “Se você disser três vezes a uma mulher que ela é bonita, nada mais é necessário; na primeira vez, ela apenas acredita; na segunda, o agradece; e, na terceira, o recompensa.”

É sem dúvida alguma um estratagema louvável.

Mas isso não é o mais importante. O fato é que devemos viver como bem entendermos – o importante é se arrepender no final, e assim assegurar um lugarzinho no Paraíso. Eu, particularmente, vivi como um filósofo mas morri como um cristão.