Bia Dória: bela, recatada e do povo. Por Camila Nogueira

Atualizado em 9 de outubro de 2016 às 15:54
Bia Dória: "bela, recatada e do povo".
Bia Dória: bela, recatada e do povo

Pelo menos quinze dos meus amigos compartilharam, entre horrorizados e jocosos, uma matéria da Folha sobre a nova primeira-dama de São Paulo, Bia Dória.

Não quis ler.

O motivo?

Possivelmente o preconceito que sinto por textos dessa espécie, que tendem a ser escritos por colunistas sociais bastante frívolos que reproduzem algumas das coisas que mais desprezo: o elitismo, a vulgaridade e o machismo.

E também, é claro, por saber que nada de bom poderia sair dali.

Mas li. E não posso negar que foi uma experiência interessante – e irritante, receio.

Devo resumir os motivos que me levaram, e sem dúvida a muitos outros, a experimentar uma irritação temperada por uma leve dose de diversão?

Bem, comecemos com um detalhe referente à segurança de São Paulo. Andar na cidade, diz Bia Dória, é perigosíssimo.

É algo que ouço com frequência, e muitas vezes sem qualquer razão. São Paulo, dizem, é uma cidade na qual arriscamos nossas vidas no momento em que saímos de casa. Lógico que isso não se aplica a Sydney, ou à Cingapura, conforme aponta a primeira-dama.

Posso citar a minha experiência pessoal. Nunca fui assaltada em São Paulo. Em Londres, fui roubada duas vezes.

Voltemos à matéria. É impossível lê-la sem lembrar do nobre elogio feito a Marcela Temer, tanto por conta do conteúdo das matérias quanto pelo fato de os jornalistas ou as jornalistas que as assinaram serem Hedda Hopper’s de segunda categoria

“Bela, recatada e do lar” poderia ser apenas substituído por “bela, recatada e do povo”.

Copio aqui três trechos que, por si só, resumem a visão de Bia Dória:

Em seu ateliê, onde faz esculturas de madeira, mármore e bronze que pesam até 20 toneladas, Bia se orgulha de ter transformado a vida dos assistentes. “Todos moravam em barracos e nem tinham dentes. Consegui casa para todos eles, dei dentes para eles, dei um plano de saúde bom. Hoje eles se sentem felizes, até se acham artistas porque são meus assistentes”.

“Sempre me senti uma Evita Perón, porque eu sou mais do povo, eu me sinto do povo”, diz a artista, casada há mais de duas décadas com o prefeito eleito e mãe de seus três filhos. “Eu me dou muito bem com pessoas mais humildes. Às vezes é só um aperto de mão, às vezes elas querem um abraço. É tão pouco o que elas querem”.

“Imagina como eu ficaria feliz se chegasse uma arrumadeira já sabendo fazer as coisas. Pouquíssimas delas sabem, a não ser as que já passaram por várias casas, mas aí elas vêm cheias de manias”.

 A única pergunta que me ocorre, ao deparar-me com tão assombrosas declarações, é: “O que diabos essa mulher entende por ‘gente humilde’?”

Porque não creio que a tal “gente humilde” esteja interessada em receber beijos e abraços de quem quer que seja. Estão interessados, isso sim, em conquistar os seus direitos e em dar um fim à desigualdade social – e é por isso que lutam.

A concepção de Bia Dória está, no mínimo, severamente ultrapassada, talvez estacionada nos anos 50. Bem se vê que Evita Perón não foi citada à toa.

Se eu pudesse oferecer um único conselho a pessoas bem-intencionadas, seria esse: evite acreditar naqueles que vangloriam-se solenemente de sua filantropia. Em geral, palavras doces como as da primeira-dama (“Eu me dou muito bem com pessoas mais humildes”) ocultam uma assombrosa condescendência e um forte senso de superioridade. Ninguém deveria se sentir mais bondoso, mais humano, somente porque cumprimenta a faxineira.

“Mas tem gente que nem isso faz”, você diria. Bem, não deixa de ser verdade – mas então o problema está na pessoa.

Um dos maiores riscos aos quais estamos expostos é o de encararmos os seres humanos, especialmente aqueles que não pertencem aos meios nos quais circulamos, como pessoas diferentes de nós, inferiores a nós. Em Um Conto de Natal, o jovem e gentil Fred declara que o Natal é a única época do ano em que abrimos de boa vontade nossos corações para as pessoas mais pobres, e nelas pensamos como nossos companheiros na viagem para o túmulo, e não como “uma raça estranha, viajando para um outro lugar”. Por vezes, penso que a falta desse reconhecimento – da “gente humilde” como pessoas exatamente iguais a nós – impera sobre as camadas economicamente superiores da sociedade.

Em determinado momento, li com voracidade mangás japoneses. Uma cena em especial me marcou. Considerei-a inteligente, irônica e adoravelmente absurda. Os protagonistas do mangá, um grupo de jovens maravilhosamente ricos, belos e ociosos, espantam-se ao descobrir a existência do café instantâneo, ou, como chamam, o “café do proletariado”. Frente a esse exótico objeto, um dos rapazes exclama, desconcertado: “Oh! Então é verdade que os pobres não têm tempo de moer os seus próprios grãos de café!”

Eu mal sabia, na época, que a mentalidade da elite brasileira permanece ainda (em pleno século XXI!) nesse estágio de pensamento. O que me pareceu, como eu disse, adoravelmente absurdo, hoje em dia, ao ler textos como os da Folha, me parece simplesmente estarrecedor.

Ainda está em tempo dos ricos brasileiros se darem conta do fato de que os pobres, além de não terem tempo disponível para moer os seus próprios grãos de café, não mais têm disposição para moer os deles.

Então
“Então é verdade que os pobres não têm tempo de moer os seus próprios grãos de café!”