Bresser-Pereira explica como juízes e procuradores violaram o teto constitucional, que ele ajudou a criar

Atualizado em 21 de agosto de 2017 às 23:02
Bresser-Pereira

PUBLICADO NO FACEBOOK DE LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA.

“Teto” e captura do patrimônio público

Nesta semana a remuneração dos magistrados afinal se transformou em escândalo. O jornal O Estado de S.Paulo informou que o Tribunal de Justiça de Mato Grosso autorizou o pagamento de cerca de meio milhão de reais a um juiz. Naturalmente o juiz se defendeu afirmando que tinha direito ao montante recebido porque ele se refere a vantagens legais que deixou de receber. Ao mesmo tempo, a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, assinou portaria que obriga os tribunais de todo o país a publicarem a folha de pagamento dos magistrados de forma detalhada incluindo todos os benefícios.

Parece uma boa reação do Poder Judiciário à captura do patrimônio público que continuam a fazer altos servidores públicos, principalmente juízes e procuradores. Parece, mas não creio que seja. O que o Supremo Tribunal Federal deveria fazer é tornar efetivo o teto de remuneração dos servidores públicos que a emenda constitucional 19, de 1998, estabeleceu.

Nessa emenda cujo autor original fui eu, em minha qualidade de então ministro do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, foi estabelecido o “teto” dos servidores públicos: a remuneração dos membros do Supremo Tribunal Federal da época. Fizemos então um grande esforço para que ficasse claro que esse teto era “absoluto”, ou seja, incluía toda e qualquer vantagem recebida pelo servidor.

A emenda dizia o seguinte no art. 37 inciso XI:

“XI – a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal”.

O texto está claríssimo. Em 2003, a emenda 41 manteve inteiramente esse texto, apenas estabelecendo um segundo teto para servidores dos estados e municípios – a remuneração do governador e do prefeito.

O esforço que então fiz para que nada ficasse por fora envolveu a discussão do texto com um grande número de pessoas, inclusive o presidente dos Supremo Tribunal Federal de então, o Ministro Sepúlveda Pertence, que me auxiliou com sua competência jurídica a tornar claro e sem exceções o teto de remuneração dos servidores.

Entretanto, em 2010, o Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal reconheceram a legalidade de uma série de vantagens além do teto. Dessa maneira aumentaram a remuneração dos altos servidores públicos que já alta em comparação com outros países; dessa maneira capturam de forma “legal” o patrimônio público – algo frequente nas sociedades modernas.

Sepúlveda Pertence

Em um trabalho de 1997 propus que depois de terem sido definidos e relativamente assegurados os direitos civis, os políticos e os sociais, respectivamente nos séculos XVIII, XIX e XX, no final deste século estava se definindo um quarto direito de cidadania: os “direitos republicanos dos cidadãos” – o direito que cada cidadão tem que o patrimônio público seja utilizado para fins públicos. A violência aos direitos republicanos não é simples corrupção; é principalmente a violência contra o patrimônio público que é definida como “legal”. É tanto a violência contra o tesouro público como contra o ambiente, que é também público. O que fazem o juiz de Mato Grosso e todos os servidores que recebem mais do que o teto é desrespeitar esse quarto direito. Fazem-no seguindo uma “interpretação” do Poder Judiciário que ignora a Constituição e legaliza o privilégio.