Cheia de som, fúria (e sotaque), “Narcos” conta uma história pela metade. Por Kiko Nogueira

Atualizado em 3 de setembro de 2015 às 10:30

 

Três questões emergem de cara para quem assiste “Narcos”: 1) o que é aquele sotaque de Wagner Moura?; 2) o sotaque de Wagner Moura é ruim, mas não atrapalha sua atuação; 3) por que não escalaram um ator que falasse espanhol?

Passado esse momento de estranheza, a nova série da Netflix satisfaz a sede do espectador que procura uma história cheia de ação, bem filmada, com tiros, pancadaria, um pouco de sexo e, claro, drogas.

Mas que não sai do chão.

Moura é Pablo Escobar, o traficante de cocaína que, nos anos 80, montou um império do crime à frente do infame cartel de Medellín, na Colômbia. Antes dos 30, já era o homem mais poderoso do país. Estendeu seus tentáculos até Miami e invadiu o maior mercado consumidor do mundo. Foi então que a agência nacional antidrogas americana (DEA) decidiu caça-lo.

Escobar é uma figura fascinante. Um tiozão barrigudo, um caseiro de sítio que se transforma num monstro. O que o leva a isso? Como um contrabandista de eletrodomésticos se transforma em Scarface?

“Narcos” não tenta dar uma resposta.

Quem faz a narração é o policial sem graça destacado para perseguir Escobar, Steve Murphy. O duelo entre ele e Escobar toma conta da narrativa. Na ânsia de estabelecer diferenças, um deles é honesto, loiro, atlético, fiel, casado com uma mulher de bom coração dona de um gato que vai até trabalhar como voluntária num hospital colombiano.

O oposto completo do vilão Escobar, com seu cabelo ruim, o bigode ridículo, as calças baggy e a obesidade. Escobar tem uma amante e mata inocentes. É um corrupto absoluto, filho de um lugar corrupto.

A Colômbia de “Narcos” se resume a florestas, onde ficam as refinarias de coca, e favelas. Nelas vivem prostitutas, guerrilheiros cabeça oca que “leram Marx demais”, políticos ladrões e padres comunistas da Teologia da Libertação. É um milagre como aquela desgraça sobreviveu.

Milagre, não. Foi graças à intervenção do pessoal da DEA, que acabou com a palhaçada e deu um jeito na indiarada.

A certa altura, Murphy e seu parceiro Peña vão parar no interrogatório de um bandido. O cara está no pau de arara. Murphy fica chocado com a tortura e se retira. Ficamos combinados que esse tipo de expediente foi inventado ali, portanto.

Em outra sequencia, numa conversa com a embaixadora em Bogotá, ela explica que “os Estados Unidos não interferem em assuntos internos” de outros países. Então, tá.

O carisma de Moura faz com que se sinta alguma espécie de empatia para com Escobar. Mas ela não avança. Não há motivo para sua desumanização. Escobar quer ser presidente — o “Robin Hood colombiano”. Isso é tudo o que temos.

Tome como exemplo Walter White, anti herói da fabulosa “Breaking Bad”, o pacato professor de química que vira chefão do tráfico. Você acaba torcendo por White porque você entende White. Há uma dose de complexidade necessária.

“Narcos” apresenta diversas imagens de TV da época. Além do verdadeiro Pablo Escobar, há cenas dos atentados que ele promoveu, bem como de confrontos militares, num belo esforço documental.

O pano de fundo é a falência da chamada Guerra às Drogas, declarada pelo casal Reagan. Numa entrevista à DW, o diretor José Padilha afirma que “uma política de combate às drogas que se concentra apenas na oferta cai num drama recorrente. É uma guerra que nunca acaba, porque a demanda continua lá.”

Padilha encontrou uma saída para explicar a complexidade da trajetória de Pablo Escobar (ou escapar dela). “Há uma razão para o realismo fantástico ter nascido na Colômbia”, Murphy diz (em que pese um tira conhecer uma escola literária sul-americana, mas vamolá). “É um país onde os sonhos e a realidade se misturam. Onde, em sua cabeça, as pessoas voam alto como Ícaro. Mas até o realismo fantástico tem seus limites”.

É uma apropriação tola e indevida. “Narcos” é bom entretenimento — que não decola. E a culpa não é de Ícaro, de García Márquez ou do quase portunhol abaianado de Wagner Moura.