Como Aécio Neves se tornou o personagem principal da Lista de Furnas. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 5 de fevereiro de 2016 às 10:58
O então governador Aécio Neves
O então governador Aécio Neves

Esta reportagem faz parte do projeto de crowdfunding do DCM sobre a Lista de Furnas. Está sendo republicada à luz do depoimento do lobista Fernando Moura, segundo o qual a estatal era controlada pelo hoje senador Aécio Neves no governo Lula: “É um terço São Paulo, um terço nacional e um terço Aécio”.

 

Era 2005, auge das CPIs dos Correios e do Mensalão, quando o presidente de Furnas, José Pedro Rodrigues de Oliveira, um quadro técnico ligado ao ex-presidente Itamar Franco, chamou à sua sala o coordenador do Programa Luz Para Todos, assessor especial da presidência, e entregou um pedaço de papel, com um nome e o número de um telefone. “Acho que isso interessa a vocês. Só que não quero que você receba esta pessoa aqui dentro”, disse José Pedro a Paulo Tadeu, ex-prefeito de Poços de Caldas e fundador do PT.

Foi assim que Paulo Tadeu tomou conhecimento da existência de Nílton Monteiro, o nome escrito no papel. Tadeu telefonou para Nílton e marcou com ele um encontro no café de uma travessa da Rua Real Grandeza, Botafogo, Rio de Janeiro, perto da sede de Furnas, acatando a ordem de não deixar Nílton passar pela recepção da empresa.

Nílton Monteiro é um homem de baixa estatura, um pouco acima do peso, que usa óculos, tem cabelos lisos e cheios, repartidos ao meio. Depois das apresentações iniciais, Nílton foi direto ao ponto.

“Ele disse que tinha algo que podia ajudar o governo a se defender das acusações do mensalão”, recorda Paulo Tadeu, durante uma longa entrevista que me concedeu. “E me entregou alguns papéis com uma relação de nomes, acompanhada de valores e a assinatura do ex-diretor de Furnas, Dimas Toledo”, acrescenta. “Eu achei impressionante e indiquei o Nílton para conversar com o deputado Rogério Correa, em Minas, que já tinha experiência na investigação dos governos tucanos, principalmente de Aécio Neves”, diz.

Aécio é o personagem central da lista, não só porque aparece como um dos que mais receberam dinheiro do caixa 2 da estatal, mas porque são antigas as relações de sua família com as empresas públicas na área de  energia. O pai, Aécio Cunha, depois de integrar durante seis anos a Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados, se tornou conselheiro de Furnas, ao mesmo tempo em que era conselheiro da Cemig, a estatal de energia de Minas Gerais.

“Furnas sempre foi território de Minas no governo federal”, conta o ex-coordenador do Programa Luz para Todos.

Furnas nasceu como a primeira grande usina hidrelétrica do Brasil, com o aproveitamento das águas do rio Grande, em Minas Gerais. Foi implantada pelo presidente Juscelino Kubistchek em 1957, para fazer frente a uma crise de energia que ameaçava deixar regiões inteiras do Brasil na escuridão.

Hoje, Furnas é um colosso com 17 usinas hidrelétricas, duas termelétricas, três parques eólicos e aproximadamente 24 mil quilômetros de linhas de transmissão e 62 subestações, que garantem o abastecimento de energia a mais de 60% das moradias do País, em regiões que respondem por mais de 80% da produção da riqueza brasileira (PIB).

Foi nessa empresa gigante que Dimas Toledo começou a trabalhar em 1968, quando se formou engenheiro eletricista pela Faculdade de Itajubá, Em 2002, era presidente interino da empresa, e assinou o documento hoje conhecido como lista de Furnas.

O documento, com o registro de confidencial, informa no primeiro parágrafo que se trata da “relação dos recursos levantados e disponibilizados por intermédio de Furnas-Centrais Elétricas S.A., entre colaboradores, fornecedores, prestadores de serviços, construtoras, bancos, fundos de pensão, corretoras de valores, seguradoras, com seus respectivos repasses direcionados aos coordenadores e responsáveis financeiros pelas campanhas dos candidatos à Presidência da República, Governadores de Estado, ao Senado Federal, Deputados Federais e Estaduais”.

O documento assinado por ele relaciona os 156 políticos que receberam dinheiro dessas empresas para a campanha eleitoral de 2002, todos eles da base de sustentação do governo de Fernando Henrique Cardoso.

Desse total, 47 eram do PSDB, 33 do PFL (atual DEM), 21 do PP, 15 do PMDB, 13 do PTB, 11 do PL (atual PR) e 16 de siglas menores. O total de doação é de 39,9 milhões de reais (R$ 95,4 milhões em valores corrigidos pelo IGP-M).

Geraldo Alckmin, o candidato a governador que venceu as eleições naquele ano, é o primeiro da lista, como destinatário de R$ 9,3 milhões (22,2 milhões em valores de hoje). José Serra, que disputou e perdeu as eleições para Lula, vem a seguir, com R$ 7 milhões (R$ 16,7 milhões).

Aécio é o terceiro da lista, como candidato a governador de Minas Gerais. Ele recebeu R$ 5,5 milhões (13,1 milhão). Na relação, também está registrado o nome da irmã de Aécio, Andréa – “valor avulso repassado para Andréa Neves, irmã de Aécio Neves, para os comitês e prefeitos do interior do Estado – MG   valor: 695.000,00”. Corrigido pelo IGP-M, R$ 1,6 milhão.

Zezé Perrella, na época candidato a deputado estadual, figura na lista como tendo recebido R$ 350 mil (R$ 837 mil) – entre parênteses, está escrito “autorização de Aécio Neves”. Um detalhe: quando a lista foi feita, Zezé Perrella ainda nem havia comprado o helicóptero que seria apreendido onze anos depois, com quase meia tonelada de pasta base de cocaína.

“Esse material pode salvar o mandato do Lula.” É o que Nílton Monteiro teria dito no café com o executivo de Furnas, nas imediações da Rua Real Grandeza. A frase que Paulo Tadeu diz ter ouvido é um pouco diferente. “Ele disse que os tucanos não tinham moral para fazer as acusações que vinham fazendo nas CPIs”, disse-me Paulo Tadeu.

O fato é que a lista se tornou pública no início de 2006, mas já era conhecida nos bastidores do Congresso Nacional desde o final de 2005, quando a CPI já estava perdendo força.

Nílton conta que foi levado ao então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, um dos que compunham o gabinete anti-crise de Lula. O ministro teria avaliado o conteúdo da lista e, com seus conhecimentos jurídicos, respaldado a credibilidade do documento.

Cumprindo uma tarefa acordada com seus interlocutores no PT, Nílton diz ter ido a Brasília. Enquanto as sessões da CPI ocorriam sob intensos holofotes da mídia, Nílton, longe deles, ia de gabinete em gabinete, mostrando uma cópia da lista.

E o que Nílton queria em troca desse trabalho? “Dinheiro”, ele admite, o que Nílton sempre buscou no subterrâneo que une empresários a políticos, desde que tinha 17 anos de idade e começou a trabalhar com o deputado Sérgio Naya, aquele mesmo do Palace II, o edifício do Rio de Janeiro que desabou em 1998.

A queda do prédio, que matou oito pessoas, colocou fim à carreira de Sérgio Naya, que se tornou milionário durante o regime militar, quando levou sua construtora para Brasília e fazia negócios dizendo-se amigo do general Golbery do Couto e Silva.

A biografia de Sérgio Naya na Wikipédia contém uma frase atribuída a Golbery: “Esse menino tem instinto para ganhar dinheiro”.

O jornalista Geraldo Elísio, um dos mais premiados de Minas Gerais, onde foi secretário-adjunto de Cultura, conheceu Naya no auge de seu poder e riqueza, na década de 80.

Convidado, esteve no apartamento dele na avenida Vieira Souto, Rio de Janeiro, quando Naya o levou para uma sala e abriu um armário com muitas barras de ouro.

“Isso tudo aqui é trambique, é meu e do Golbery”, disse-lhe Naya, que retirou duas pequenas barras, de 250 gramas cada uma, e entregou a Geraldo Elísio, que polidamente recusou. “Mas um presente você vai levar”, insistiu Naya ao homem que, na época, fazia parte do governo de Minas Gerais. E retirou de outro armário uma camisa de linho de algodão. “Este presente eu aceito, porque eu posso dar uma camisa igual para você. Mas o ouro eu não posso.”

Eu soube dessa história um dia depois de Geraldo me conceder entrevista gravada. Geraldo é um personagem importante para entender o caso da lista de Furnas e o silêncio da mídia em torno dela. O jornalista era editor do site Novo Jornal, o único veículo que dava notícias críticas ao governo de Aécio em Minas, inclusive a lista de Furnas.

No início de 2014, quando Aécio estava com sua pré-campanha a presidente na rua, o site foi retirado do ar por uma decisão da Justiça, duas pessoas foram presas e a casa do jornalista foi revirada por policiais que tinham um mandado de busca e apreensão.

Geraldo Elísio me acompanhou no primeiro encontro com Nílton Monteiro. A conversa começou por volta das 4 da tarde e se estendeu até às duas da manhã.  Jantávamos. Nílton ainda estava hesitante quanto a gravar a entrevista, e falávamos de Naya. Nílton virou-se para Geraldo, e perguntou, em voz baixa: “Por que você não aceitou as barrinhas?”. E Geraldo então relatou o encontro com Naya e suas barrinhas de ouro.

Enquanto Geraldo falava, Nílton balançava negativamente a cabeça. Depois, meio brincando, meio sério, lembrou o que Naya disse sobre Geraldo. “Como é que o Geraldo come mulher se não gosta de dinheiro?”

Foi nesse ambiente que Nílton cresceu e, à sombra do chefe, desfrutou de algum prestígio. A revista IstoÉ, quando ainda fazia algum reportagem crítica ao grupo de Aécio Neves em Minas Gerais, publicou uma foto em que Nílton Monteiro está numa lancha, na companhia de Cláudio Mourão,  ex- tesoureiro dos tucanos em Minas, e duas mulheres. A foto ilustra a reportagem em que Nílton Monteiro denunciou o mensalão mineiro.

Sim, foi do mesmo baú de onde saiu a lista de Furnas que vieram à tona os documentos bancários e a contabilidade que comprovam que o publicitário Marcos Valério, antes de servir em Brasília, abastecia os políticos em Minas Gerais, durante o governo de Eduardo Azeredo.

“Foi a veracidade das denúncias do Nílton Monteiro no mensalão tucano que me fez levar adiante o caso da lista de Furnas”, conta o deputado petista Rogério Correa. “As informações tinham consistência”,  afirma.

A primeira reação dos políticos relacionados tanto na lista de Furnas quanto no mensalão mineiro foi desqualificar Nílton Monteiro. Diziam que era um estelionatário, estava tentando extorquir dinheiro e que os documentos eram falsos.

No caso do mensalão mineiro, não resta mais nenhuma dúvida quanto à autenticidade das provas. O processo só não foi julgado ainda porque o Supremo Tribunal Federal, depois de condenar os petistas no mensalão de Brasília, remeteu o processo que envolve a antiga cúpula tucana para Minas Gerais, e o processo está parado no Tribunal de Justiça.

Quanto à lista de Furnas, foi levantada uma densa cortina de fumaça. Falsa, a lista não é. Peritos da Polícia Federal analisaram o documento e concluíram que a assinatura é mesmo de Dimas Toledo, apesar da negativa que fez na CPI nos Correios e na Polícia Federal.

 

Nilton Monteiro
Nilton Monteiro

 

Quanto à existência de caixa 2 beneficiando políticos a partir dos serviços prestados em Furnas, também não restou dúvida depois que uma procuradora da república no Rio de Janeiro denunciou Dimas Toledo, Nílton Monteiro e alguns empresários pelo desvio de recursos da estatal de energia elétrica.

Um dos denunciados é o ex-deputado Roberto Jefferson. Na época em que a procuradora fez a denúncia, Roberto, como ex-deputado, já não tinha foro privilegiado e pôde ser interrogado na primeira instância. Ele confirmou ter recebido R$ 75 mil para sua campanha a deputado federal em 2002, exatamente o mesmo valor que aparece na lista de Furnas (R$ 180 mil em valores atuais).

“Quando Roberto Jefferson denunciou o mensalão de Brasília, o mundo veio abaixo e a mídia caiu de pau. Quando Jefferson confessa o caixa 2 no esquema tucano, ninguém dá um pio. Até quando viveremos com uma democracia de dois pesos e duas medidas?”, pergunta Rogério.

Outro ex-deputado, Antônio Júlio, hoje prefeito de Pará de Minas, apareceu na lista como destinatário de R$ 150 mil (R$ 356 mil em valor atualizado) e, assim como Jefferson, teve coragem de admitir a veracidade da informação.

Muito recentemente, o caixa 2 de Furnas apareceu na operação Lava-Jato, por intermédio de um dos depoimentos do doleiro Alberto Youssef. Ele disse que ouviu de um dos seus mais próximos clientes, o ex-deputado do PP José Janene, já falecido, que Aécio Neves recebia por intermédio da empresa Bauruense, prestadora de serviço em Furnas, um quinhão dos desvios da estatal. Chega a citar uma irmã de Aécio como a pessoa que recebia a propina. Quem será a irmã?

O depoimento de Youssef até agora não teve desdobramento, assim como a denúncia da procuradora da república no Rio que investigou a corrupção em Furnas. Depois de fazer a denúncia, em que afirma não ter poderes para processar políticos com foro privilegiado, Andrea Bayrão descobriu que seu poder era ainda mais limitado.

Um juiz federal entendeu que o caso era da alçada estadual e mandou todo inquérito e a denúncia da procuradora para o Ministério Público do Estado do Rio, onde a investigação está parada. Procurei Andréa Bayrão, a procuradora, e ela disse que não tem mais nada para falar a respeito de Furnas.

Enquanto isso, Dimas Toledo, autor da lista e cérebro do caixa 2 de Furnas, segue sem ser incomodado num hotel de sua propriedade em Minas. Ele está para Furnas assim como Paulo Roberto Costa está para Petrobrás. A este, foi oferecido o benefício da delação premiada e o que se seguiu, sob a jurisdição do juiz Sérgio Moro, é do conhecimento de todos.

Dimas tem um filho deputado federal e só saiu de Furnas no final do primeiro governo Lula. A pergunta que não quer calar é: com que objetivo ele fez uma lista em que se auto incrimina? Nílton tem a resposta: Dimas queria permanecer na direção de Furnas e fez a lista para chantagear os tucanos, particularmente Aécio Neves, forçando-o a negociar com Lula sua permanência na estatal. Nílton foi o mensageiro que levou a lista a um grupo restrito de políticos do PSDB.

A data da lista é 30 de novembro de 2002, pouco mais de um mês após a eleição de Lula. Em janeiro, a recém-nomeada ministra das Minas e Energia, Dilma Rousseff, dá posse à diretoria de Furnas. Na revista da empresa, Dimas Toledo aparece na foto e a legenda informa: ele foi mantido na direção da empresa, agora como diretor de Planejamento, Engenharia e Construção. A mesma reportagem registra a permanência de Aécio Cunha, o pai de Aécio, no Conselho de Administração. O governo federal tinha trocado de mãos, mas Furnas ainda era um ninho de Aécio Neves.