Como a Folha de S.Paulo trata o contraditório. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 7 de fevereiro de 2018 às 8:54

Por Gilberto Maringoni em seu Facebook.

Capa da Folha de S.Paulo. Foto: Divulgação/Facebook

Neste domingo (4), o caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, publicou extenso artigo de Armínio Fraga e Robert Muggah, fazendo um diagnóstico da política externa brasileira e traçando rumos para o futuro. Postei ontem mesmo o texto aqui no Facebook.

Achei o artigo superficial e muito ruim.

Escrevi ao editor do caderno, cujo nome omito, para saber da possibilidade de publicarem uma réplica, que eu pretendia escrever.

Eu sei ser impossível a um editor se comprometer a publicar algo ainda não escrito. Daí minha cautelosa questão.

Para minha surpresa, ele negou, de cara, a possibilidade.

Eis nossa troca de mensagens

MINHA MENSAGEM AO EDITOR

Prezado [Editor do caderno Ilustríssima],

Como vai?
Li, neste domingo, o artigo “Reformas para o Brasil ganhar espaço no tabuleiro mundial”, assinado por Armínio Fraga e Robert Muggah.

Não se trata apenas de discordância com o texto, mas me espanta que peça tão superficial e repleta de meias-verdades seja publicada em tão largo espaço.

Gostaria de saber se há possibilidade de a Ilustríssima publicar o contraditório que pretendo escrever.

Atenciosamente,
Gilberto Maringoni

A RESPOSTA DO EDITOR
Caro professor,
Não tenho como dar uma resposta a partir de seu email abaixo. É uma sugestão muito genérica. A princípio, no entanto, posso dizer que não vejo muito calor nesse debate.

Grato,
[Editor do caderno Ilustríssima]

MINHA TRÉPLICA
Caro [Editor do caderno Ilustríssima]
Espanta-me ver que o editor de um caderno de ideias atue para interditar as mesmas. Mais espantoso é que este editor não “vê calor” no tema central da inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho pós-2008, em meio à crise por nós enfrentada.

Paciência. Quero apenas enumerar algumas das muitas insuficiências das linhas cometidas por Armínio Fraga e Roberto Muggah, no artigo “Reformas para o Brasil ganhar espaço no tabuleiro mundial”:

1. Dizem os autores: “A ordem liberal internacional está sob ataque. O compromisso assumido sete décadas atrás pelos países ocidentais quanto a segurança comum, mercados abertos e democratização está perdendo a força”.
Armínio e Muggah parecem não conhecer a história das últimas sete décadas. O compromisso do pós-Guerra não foi liberal, mas um pacto de compromisso entre liberais e desenvolvimentistas para a superação do liberalismo materializado por um século de supremacia britânica. Este desembocou em duas guerras mundiais e uma crise no centro do sistema. Temos aqui quase um consenso na historiografia das relações internacionais. E não se trata de um período unívoco. Nele tiveram lugar diversas fases da Guerra Fria, o unilateralismo estadunidense, a ascensão da China e a tendência à multipolaridade;

2. “O populismo reacionário e a crescente desigualdade de oportunidades e de renda nas economias mais avançadas também têm sua parcela de culpa”.
Armínio e seu colega jogam conceitos na base do “se colar, colou”. O que é “populismo reacionário”? Reacionário em relação a qual ação? Por que existem “crescentes desigualdades de renda” em tais economias?

3. “A despeito de terem se beneficiado da ordem liberal internacional, muitos países latino-americanos, especialmente o Brasil, reagem de forma ambígua diante do fim desse quadro e até parecem aliviados. Isso é um erro”.
Se Armínio e Muggah acompanhassem os debates sobre os rumos da economia brasileira a partir da célebre controvérsia entre desenvolvimentistas e liberais – em especial entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin, em 1944-45 – não escreveria o que escreve. Tenho vontade de enviar a ele meu livro sobre o tema, publicado pelo IPEA, em 2010. Fizessem isso, veriam que a adesão brasileira à ordem global, hegemonizada pelos EUA, nunca foi um caminho suave.

4. Para compreender o agnosticismo latino-americano, é preciso recuar ao nascimento da ordem liberal internacional, em 1945. (…) Sua face institucional inclui a Organização das Nações Unidas, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional…”
A criação da ONU ensejou uma dificílima articulação que levou em conta a hierarquia entre países e a força relativa de cada um. Após 1949, a Organização foi pesadamente criticada pelo establishment norteamericano. Para Armínio e Muggah, não existe disputa política, ordem é coisa que cai do ceu e História significa um desfiar contínuo de fatos, coisas e datas.

5. “Essas entidades, algumas das quais excluíam os países latino-americanos, tinham por compromisso a difusão do Estado de Direito, a democratização, a preservação de mercados abertos…”
Uma pergunta: colocamos a deposição de Jacobo Árbenz (1954), na Guatemala, o golpe no Brasil (1964) e no Chile (1973), entre vários outros, na conta da “difusão do Estado de Direito” e da “democratização”?

6. “A ordem liberal internacional endossou a ideia de um jogo de soma positiva, e não o de soma zero (no qual um perde o que o outro ganha) que prevaleceu por séculos”.
Ótimo. Só falta explicar como se deu isso. Armínio e Muggah deveriam buscar conhecer a história de um organismo chamado Cepal.

7. “A partir dos anos 80, o comprometimento latino-americano perdeu ainda mais força, apesar do colapso da União Soviética (1989). A maioria dos países da região encarava com desconfiança as terapias de choque (muitas vezes mal implementadas) impostas pelo Consenso de Washington”.
“Encarava com desconfiança”? Tucanaram a década perdida? Países como México, Brasil e Argentina quebraram ao longo da crise da dívida. Armínio e Muggah fazem tábula rasa dos efeitos da crise norteamericana e da adoção do dólar flexível, a partir de 1972-73. Essas medidas possibilitaram a externalização da crise dos EUA e sua recuperação ao longo dos anos 1980, algo verificável através da consulta de qualquer gráfico da evolução de seu PIB. My God!

8. “A partir da presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), contudo, o Itamaraty e sua estratégia tradicional foram deixados de lado”.
Armínio e Muggah precisam estudar mais um pouquinho. Certamente desconhecem a linha crescentemente nacionalista do Itamaraty a partir da política externa para o desenvolvimento, de Vargas, passando pela Política Externa Independente de Janio e Jango, pelo Pragmatismo Responsável de Geisel, até chegar à Política Externa Altiva e Ativa, de Lula. Fizessem isso, perceberiam que a estratégia dominante do MRE tende mais para essas diretrizes e que as políticas externas de Castello Branco, Collor de Mello, FHC e Temer é que deixam de lado uma tradição em curso.

9. “Enquanto o Brasil advogava maior cooperação entre as nações em desenvolvimento, a expansão acelerada dos negócios privados e públicos brasileiros em regimes antiliberais causou preocupações quanto ao compromisso do país com a ordem liberal internacional”.
Armínio e Muggah chegaram agora de Marte? Nosso comércio internacional com a América Latina, Ásia e África se multiplicou por cinco, na média, e contou com entusiasmado apoio empresarial nesses anos. Até mesmo com um dos países do “eixo do mal”, o Irã, essa adesão foi forte. Veja-se notícia da Agência Brasil, de 11 de abril de 2010: “Daqui a um mês, no dia 15 de maio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai a Teerã, no Irã. Antes, chegará ao país o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Miguel Jorge, que comanda um grupo com 86 empresários brasileiros”.

Há muito mais na diatribe do banqueiro e do ongueiro. Praticamente cada parágrafo embute uma meia verdade ou uma ignorância interessada. Não quero aborrecer a você, caro [Editor do caderno Ilustríssima], com um debate que não provoca “calor”.

Falar nisso, vejo também que a queda acentuada da circulação dos jornais se dá pelo fato do público sentir cada vez menos “calor” no que lê. A voz monocórdia de banqueiros pode render alguma receita publicitária, mas cada vez menos a simpatia do leitor.

Saudações,

Gilberto Maringoni