Como o Everest se transfomou num produto para consumistas vulgares

Atualizado em 16 de junho de 2013 às 9:07

A mais alta montanha do mundo está sendo estuprada pelos turistas.

Turistas descansam na escalada do Everest
Turistas descansam na escalada do Everest

Na minha primeira experiência em montanha alta, um fato curioso e patético me deixou perplexo.

Ao retornar de uma excursão para contemplar o Monte Aconcágua, duas turistas europeias recém-chegadas de uma subida ao cume entraram na sede administrativa do Parque Provincial pedindo um certificado.

No documento, deveria constar que elas tinham subido os 6.960m da montanha mais elevada do continente americano.

Era difícil acreditar que alguém entregue a uma experiência supostamente tão transformadora, acreditasse que precisava comprová-la através de rabiscos de tinta num pedaço de papel.

E o caminho que tinham trilhado sequer se tratava de uma clássica escalada. Além disso, existe uma considerável infraestrutura operada por empresas especializadas neste tipo de aventura “à la carte” nos vários acampamentos que rodeiam a montanha.

Ainda assim, a altitude exige certo período de adaptação, e a extensão das trilhas demanda um estado físico compatível. Por outro lado, a paisagem dramática e marciana, presidida por uma das maiores montanhas do mundo, alimenta a alma ao longo da jornada.

No caso das tais turistas, tratava-se sobretudo de um banquete para o ego.

O certo é que nenhuma infraestrutura existia quando o suíço Matthias Zurbriggen conquistou sozinho o Aconcágua, em 1897, na expedição do inglês Edward Fitzgerald. E ele tampouco precisou de um pedaço de papel para que seu nome entrasse para os anais do montanhismo.

Resgatei esta experiência diante da constatação de que o outrora temido Monte Everest parece ter perdido a aura de paragem inexpugnável que lhe caracterizava.

Alvo de um frenesi turístico, o ponto culminante do planeta vem sendo “atacado” por mais de trezentos excursionistas diariamente. Fato explicado pelo início do melhor período do ano para realizar a ascensão.

Esses dados vieram à tona na semana passada, quando a comunidade de alpinistas profissionais alertou para o perigo e o impacto ambiental da massificação do turismo na região.

Tal invasão transforma um desafio que já não é propriamente um passeio no parque, num feito ainda mais perigoso. Um simples desprendimento de uma rocha pode ocasionar a morte de dezenas de pessoas simultaneamente.

Um risco que no caso do Everest não se trata de puro exagero. Somente na primeira metade de 2013, oito pessoas já sucumbiram no afã de conquistar seu cume.

Sem falar que muitos dos turistas não têm experiência em montanhas desse porte. Para supri-la, contratam a ajuda de alguns habitantes locais, os xerpas, e se armam de botijões de oxigênio para vencer o ar rarefeito e conquistar a montanha.

A afluência massiva provoca filas gigantescas que se estendem por suas encostas, colocando a todos em perigo diante de uma maior exposição ao mal agudo de montanha e ao risco de congelamento.

Como não bastasse, uma parte significativa do equipamento é deixada para trás, emporcalhando a região: anualmente, três toneladas de lixo são retiradas da montanha.

Imagino um alpinista perdido por ali que, quase sem forças, se encha de alegria e encontre fôlego para gritar “Civilização!”, ao encontrar o chiqueiro em que devem ter se transformado algumas das paisagens do outrora inacessível Everest.

A invasão turística foi tema para a veneranda National Geographic
A invasão turística foi tema para a veneranda National Geographic

Não é novidade o fascínio que a montanha provoca em muitas pessoas; inclusive em mim.

A majestade da superfície escarpada, o retorno ao que há de mais essencial ao enfrentá-las e a sensação de superação seduzem o autêntico montanhista.

O silêncio da alta montanha favorece um tipo de contemplação dificilmente alcançável sem alguma forma de alteração psicotrópica do estado mental.

O ar rarefeito torna a vida algo precioso. A natureza rasteira das plantas que se agarram ao solo descortina a implacável luta pela vida num ambiente belo e hostil.

Caso seja bem-aventurado ao ponto de contemplar o vôo silencioso de um condor ou de uma águia, ou a agilidade de uma cabra escalando uma parede íngreme, o vírus da montanha se impregnará rapidamente em sua alma.

Ao mesmo tempo, o montanhismo é como o encantamento de serpentes. Há pouca margem para erros de julgamento. As trilhas muitas vezes estão sujeitas a mudanças repentinas. Uma encosta pode se tornar precipitosa subitamente ao ponto de um simples tropeço custar uma queda fatal num abismo.

Certamente não há solidão mais pura do que a de enfrentar o perigo de uma montanha.

Quando devidamente equipado e ciente de suas limitações, o montanhista encontra neste desafio uma oportunidade para o fortalecimento mental.

Ainda assim, acidentes como tropeços em pedras resvaladiças, avalanches ou deslizamentos de rochas podem levar facilmente à morte.

Diante deste perfil ameaçador e ao mesmo transformador soa inusitada uma invasão a uma região do planeta que exige o uso de oxigênio para ser frequentada.

O que leva pessoas sem qualquer experiência em montanha alta a tentar enfrentar o Everest logo de cara?

A resposta talvez seja tão complexa como alcançar seu cume. Mas o questionamento me faz lembrar uma experiência compartilhada por um velho e curtido guia de montanha que conheci na Patagônia.

Dizia-me que na década de sessenta, em muitas ocasiões, guiara milionários europeus e norte-americanos em aventuras no Aconcágua e Fitz Roy. Gente com mais dinheiro do que podia gastar em vida e que buscava um desafio que só as regiões mais inóspitas do planeta poderiam oferecer.

Hoje em dia estas regiões já não sofrem o assédio de um turismo de luxo, e sim do frenesi massificado de aventureiros de classe média, que desejam acrescentar mais um pico “inacessível” ao currículo. De preferência, comprovado com um certificado, para poder esfregar a aventura na cara do vizinho, como já faz com o carro de luxo ou a televisão de 86 polegadas.

E assim a montanha mais alta do planeta se vê transformada num produto, subvertendo-se o engrandecimento espiritual no mais abjeto consumismo.