O que aprendi na redação da revista sueca que inspirou a Millenium de Stieg Larsson

Atualizado em 21 de novembro de 2012 às 20:34
Kajsa, na Expo

“ERA AQUI QUE ele trabalhava”, me diz a jornalista Kajsa Lindohf. É uma típica sueca: loira, olhos claros, sorridente, simpática.  Afável e bem preparada.  A roupa informal e alegremente colorida trai o espírito igualitário incorporado tão fortemente à cultura sueca. Ninguém é melhor que ninguém. Essa a mensagem. Kajsa poderia estar numa praia de hippies, ou numa montagem nova de Hair. Como todo sueco, incluídos os mendigos, fala um bom inglês. Estamos na redação da Expo, em Estolcomo. É uma redação pequena, silenciosa, minimalista, parcamente povoada. As pessoas que estão ali são voluntárias. Têm que ganhar dinheiro em outro lugar. A Expo era uma paixão de seu fundador, Stieg Larsson, o autor da Trilogia Millenium. Seu coração se arrebentou ali, ao subir a escada do prédio num final de dia em que o elevador enguiçara, pouco tempo antes do lançamento do primeiro livro.

Ela me mostra a mesa que ele ocupava. É uma revista trimestral, e seu conteúdo defende as causas que eram caras a Larsson e são a Kajsa e à aguerrida e compacta equipe de colaboradores. A Expo é contra fobias preconceituosas. Combate a homofobia, a islamofobia. Vigia os passos da extrema direita sueca, pequena mas barulhenta. Conquistou respeito entre os suecos em seus 17 anos de existência com seu jornalismo investigativo. A Expo, mais que uma revista, é uma fundação. Entre suas atividades estão palestras cujos temas são os mesmos que fazem parte do repertório da revista. A Expo inspirou a Millenium, da trilogia.

Estou ali com Kajsa porque quero decifrar Stieg Larsson. Ouvi falar dele há algum tempo e, numa palavra, desprezei. Mais um daqueles que fazem livros como se fossem Big Macs, pensei. Até o dia em que li uma entrevista com sua viúva, Eva Gabrielsson. Vi que a história pessoal de Larsson era fascinante: sua luta como jornalista, seu idealismo jamais corrompido, seu martírio literário. Escrevia nas madrugadas, empurrado por cigarros e cafés, e morreu para que Lisbeth Salander e Michael Blomkvist, da trilogia, nascessem. De família simples, neto e filho de comunistas, Larsson viveu sem dinheiro. Morto, seus livros se revelariam uma fonte formidável de dinheiro.

Depois de ler a entrevista com Eva, comprei o primeiro volume da trilogia. Encontrei nele todos os clichês dos livros de suspense de autores como Dan Brown ou John Grisham. Mas ao mesmo tempo vi no conteúdo um idealismo que, não sei exatamente por que, me comoveu. Todo jornalista é idealista aos 20 anos. Mas aos 50, como Larsson era ao morrer, quase sempre os ideais já se dissiparam em cinismo e covardia. Lisbeth Salander é uma personagem interessante, é certo. Mas Mikhael Blomkvist, o jornalista que tem muito do próprio Larsson, me toca muito mais. Estou ali na redação com Kajsa porque quero conhecer Stieg Larsson.

Stieg Larsson não viu o sucesso de seus livros

Dois jornalistas suecos disseram que ele não sabia escrever. A repercussão foi ampla. Larsson virou uma personagem mítica entre os suecos. Almocei com um deles. Pergunto a Kajsa o que acha disso. “São pessoas que trabalharam com ele quando ele estava começando”, ela diz. “Eu mesma, se visse hoje um texto que escrevi quando entrei numa redação pela primeira vez, diria que era melhor procurar outra profissão.” Ela acha que existe um considerável teor de inveja nos ataques, e era exatamente esta, também, a minha impressão.

Jornalistas costumam detestar o sucesso de outros jornalistas, mesmo quando se trata de um morto.

“Qual a diferença entre a redação da Millenium e a da Expo?”, pergunto. “Bem, a Millenium é muito mais excitante”,  ela me responde. Jornalismo na ficção, seja em livros ou cinema, é muito mais emocionante que jornalismo na vida real. As pessoas acabam fazendo uma idéia errada de uma redação.”Como você sabe, numa redação a gente pega textos, edita, faz as mesmas coisas basicamente todos os dias.” A Millenium não. Seu principal jornalista, Blomkvist, lembra mais Batman do que as pessoas que você vê nas redações.

“E a Suécia da trilogia, o que tem a ver com a Suécia real?”, pergunto a ela. “Pouca coisa”, ela diz. O país verdadeiro é tão desenvolvido socialmente que beira o tédio. O país de Larsson é habitado por capitalistas sinistros, pais que estupram filhas, filhas que matam pais, assassinos seriais, garotas desajustadas que colocam piercings nos lábios de baixo e tatuam dragões nas costas, tutores pervertidos, gangues que infernizam os inocentes nas estações de metrô.

Livros de suspense, como os de Larsson, são altamente consumidos pelos suecos. Uma boa explicação para isso é que, neles, as pessoas escapam da segurança de certa forma enfadonha em que vivem. Uma das virtudes da emoção associada à leitura é que basta fechar o livro que você retorna à tranquilidade. Em São Paulo, você não tem que ler ficção para que seu coração bata mais rápido. A insegurança da cidade se incumbe disso. Na Suécia, a violência é quase que exclusividade dos livros policiais.

Pergunto a Kajsa sobre a hostilidade crescente ao islamismo que se observa na Europa. “As pessoas exageram muito nas estatísticas”, ela afirma. “Os islâmicos radicais são uma minoria insignificante.” Esta é uma visão hoje restrita a europeus com forte espírito igualitário, como é comum na Suécia. Para quase todos os demais, o sonho dourado é que os muçulmanos retornem a seus países de origem. “Somos um país rico, temos que ajudar os pobres. Podemos e devemos.”

Manifesto a ela minha estranheza com a lei sueca para concubinas. Eva viveu cerca de 30 anos com Larsson, mas não casaram formalmente. Ele não fez testamento. Em consequência, Eva ficou inteiramente alijada do espólio multimilionário que brotou com a trilogia depois da morte do autor. Tudo está com o pai e o irmão de Larsson. Eva briga na justiça sueca por uma fatia. A geração do casal Stieg e Eva, crescida no rastro da rebeldia dos anos 60, achava burguês casar no cartório. Dedo com aliança era dedo rendido ao sistema. Kajsa é de outro tempo. “Eu uso aliança porque amo meu marido”.

Nem ela nem ninguém com quem falei pareceu se incomodar com a legislação que não protegeu Eva. Lei é lei, ouvi uma vez. Concordo em que lei ruim é melhor que nenhuma lei, mas mesmo assim saí da Suécia com a convicção de que nos direitos da mulher que não é casada oficialmente o Brasil é mais avançado.

Agradeço a atenção de Kajsa. Na despedida, ela me diz que tem uma ótima impressão dos brasileiros por causa de uma jornalista com a qual trabalhou numa emissora de televisão, Tilde de Paula. “É a melhor apresentadora de televisão da Suécia”, ela diz. “E nasceu no Brasil. É fluente em português. Ganhou vários prêmios.” Um momento: a melhor apresentadora da Suécia nasceu no Brasil? “Achei que seria uma boa personagem para você”, Kajsa me diz.

Tilde de Paula

Bem, fui saber depois que Tilde não é exatamente brasileira. É chilena. Seu pai sim é brasileiro. Ele fugiu para o Chile quando o governo de João Goulart foi deposto pelos militares em 1964. Tilde nasceu lá. Quando Pinochet se instalou no poder no Chile, a família foi para a Suécia. Tilde cresceu lá e virou uma celebridade jornalística. Há alguns anos, foi votada a mulher mais sexy da Suécia. É uma personagem interessante, sim. Quero falar com ela, conhecer sua história de sucesso e de lantejoulas. Uma filha de brasileiro mesmeriza os suecos na tevê. Notícia, claro.

Mas.

Mas não há neste tipo de biografia à Caras uma fração da grandeza épica com que nas sombras, mal pagos, movidos apenas pelos ideais e não pelas moedas ou holofotes, repórteres investigativos malpagos como Stieg Larsson combatem o bom combate.

Este texto foi publicado no Diário do Centro do Mundo em 20 de abril de 2010.

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