Dois pretinhos e um táxi: uma história real de Emicida

Atualizado em 23 de julho de 2015 às 4:42
Emicida
Emicida

Publicado por Emicida em sua página no Facebook.

Rapidinho.

Que cena foda aquela do filme do James Brown no final, onde ele foge da polícia e ao ser enquadrado, quando abre a porta e desce do carro, ele volta a ser apenas uma criança, um pretinho. Isso foi muito forte pra mim.

Tava ali hoje com meu parceiro Djose, fui resolver umas pendências no cartório por que segundo semestre tem uns shows pela europa de novo, tudo rapidinho no cartório.

Passamos na lotérica pra pagar umas contas, mesma coisa de sempre, umas fotos, umas piadas, faz uma rimaê Emicida, todo mundo ri e volta pros seus universos.

Detalhe – a menina da lotérica pergunta em choque – porque ele está escondendo o rosto? Isso devido ao fato de ele estar de boné, havia outras três pessoas de boné na lotérica
(comigo quatro) e quem adivinhar a diferença entre elas e o Djose ganha um brinde.

Sem novidade.

Fióti me chama pra ir ao escritório assinar um documento, eu que estava a pé naquele rolêzinho pela norte, pra agilizar resolvo pegar um táxi. Selfie com o menino do posto de gasolina.

Djose acena pro primeiro que passa, ele diminui a velocidade, olha bem pros dois pretos e acelera de novo como se não tivesse nos visto. Foda-se, rimos e continuamos, afinal existem centenas de taxis na cidade, certo?

Vem um ciclista e pede pra tirar foto, é fã e está emocionado. Da hora.
O segundo táxi que vem, idem, avalia o freguês e acelera de novo. Aí já ficamos mais sérios. Deixou de ser uma piada.

Chegamos a um ponto de táxi, freia um eco-sport ao lado do táxi, era outro fã, me comprimenta, eu retribuo, viro pro taxista, mando meu boa tarde e pergunto se o taxi dele está livre, ele atua no procedimento padrão:

– Pra onde você vai?

Respondo o bairro e ele destrava a porta.

Entramos e sentamos no banco traseiro, ele nem liga o carro, vira e diz que não podem ir duas pessoas no banco traseiro.

Eu pergunto de onde ele tirou isso e ele me responde que é assim mesmo. Ponto final.

Nos recusamos a ir pro banco da frente e ele ainda sem ligar nem o carro e nem o taxímetro pergunta:

– Qual o endereço exato de onde vocês vão.

Eu no auge da minha paciência digo o endereço e ele repete:

– Agora um dos dois passa pra frente.

Nos recusamos novamente e pergunto – qual o problema?

Silêncio.

Ele me pergunta o endereço exato novamente.

Eu pergunto qual o problema outra vez.

Ele vira, se nega a nos levar e silêncio.

Dei umas xingadas e desci do carro.

Uma menina acena e grita:

-Parabéns pelo trabalho, sou fã!

Agradeço sorrindo automaticamente.
Então fomos, eu e Djose, procurar outro táxi, debatendo sobre como é foda isso ainda ser tão normal.

Fiquei pensando nessa cena do filme do James Brown, o rei do soul, do funk, uma das mais influentes figuras do século 20, mas na hora do enquadro, o policial não era fã de Soul. E então, James Brown era só mais um pretinho.

Depois de ter tirado todas aquelas fotos, ter saído de uma entrevista, indo renovar o passaporte pra tocar na gringa outra vez, com a cara na capa da revista e tudo mais. Nada importa. O Taxista não era fã de rap. No final, a gente era só dois pretinhos e como Gil e Caetano cantaram em Haiti, todos sabem como se tratam os pretos.