Duelo de filósofos, realismo mágico e estranheza: o novo romance do polêmico escritor Salman Rushdie. Por Luísa Gadelha

Atualizado em 25 de abril de 2016 às 18:44

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Os djins são conhecidos na cultura árabe como criaturas sobrenaturais, feitas de fogo sem fumaça, que vivem em um mundo paralelo ao nosso. São caprichosos, impulsivos e inconstantes, intervindo na vida humana quando lhes convém, seja para ajudar ou para praticar o mal.

O novo romance do controverso escritor inglês de origem indiana Salman Rushdie, Dois anos, oito meses e 28 noites (Companhia das Letras, 335 páginas, tradução de Donaldson M. Garschagen), é uma mistura de Ocidente e Oriente, com elementos de ambas as culturas, personagens reais e inventados e uma grotesca guerra dos djins nos dias atuais.

O filósofo muçulmano Ibn Rushd – ou Averróis, como é conhecido no Ocidente – viveu na Andaluzia, no século XII, e dedicou-se a estudar a obra aristotélica e a desenvolver a lógica e o racionalismo. No romance, Ibn Rushd é visitado por Dúnia, uma djínia fascinada pelos seres humanos, a tal ponto que adquiriu suas paixões, tendo virado amante de Ibn Rushd e a ele se dedicado durante dois anos, oito meses e 28 noites – ou exatas mil e uma noites.

A obra é claramente inspirada na compilação de histórias das Mil e Uma Noites, com a diferença de que Dúnia é uma espécie de anti-Sherazade: enquanto a princesa dos contos árabes conta histórias para escapar da morte, Dúnia ouve histórias que poderiam matar a si e ao marido: Ibn Rushd, com suas ideias filosóficas em desacordo com o Corão, lhe conta como a razão pode ser independente da fé.

Embora o período em que Dúnia e Ibn Rushd viveram tenha sido curto, uma extensa prole foi gerada, de linhagem matriarcal, cujos descendentes se espalharam pelos continentes, chegando à América. A característica típica e comum desses filhos da djínia, que desconhecem sua origem, é a ausência do lóbulo auricular.

Dando um salto no tempo, chegamos à Nova York dos dias de hoje onde uma estranha tempestade inaugura uma “nova era de irracionalismo” e uma “colossal fragmentação da realidade”: fatos estranhos e ilógicos começam a ocorrer, como um jardineiro que não toca mais o chão, levitando de forma intrigante, um quadrinista que vê aparecer o super-herói que criou em seus gibis ou a bebê que tem o dom de adoecer os corruptos à sua volta (precisamos de uma dessas no Brasil…).

Na verdade, a tênue linha que separa o nosso mundo do mundo dos djins foi rompida e Dúnia deve reunir seus descendentes para a guerra dos mundos, a grande batalha dos djins luminosos contra os djins tenebrosos.

Mr. Gerônimo, o jardineiro que estranhamente deixa de tocar o chão, desconfia de que sofre de uma “falha gravitacional”. Indiano radicado nos Estados Unidos, o nome original de Gerônimo é Hieronymus, o mesmo do famoso pintor Bosch, que concebeu o jardim das delícias. Mr. Gerônimo apaixona-se pela filha de Bento Elfenbein, que se orgulha de trazer o nome do filósofo Bento, ou Baruch, de Espinoza).

O romance, assim, está cheio de referências e insinuações a artistas, filósofos e escritores antigos e atuais, bem como a cineastas e quadrinhos da cultura pop, o que pode tornar a leitura um pouco difícil para leitores não familiarizados a tais alusões.

Para além do realismo mágico e da abundância de informações no romance de Salman Rushdie, sua prosa é divertidíssima, de humor fino e sarcástico. O duelo entre Averróis e seu rival, o filósofo Ghazali, permeia toda a obra, no embate entre razão e fé, racionalismo e estranheza, a inexplicável estranheza que começa a ocorrer após a tempestade.

Outra temática que perpassa a obra, de maneira um pouco sutil, é a imigração dos orientais para o Ocidente, a adaptação e até mesmo a sensação do “sentir-se em casa”. (“Talvez a doença – a estranheza parecia ser agora uma doença social – tivesse sido trazida para a América por algumas dessas pessoas, indianos, paquistaneses, bengaleses, do mesmo modo como a devastadora epidemia de aids tinha aparecido em algum ponto da África Central e chegado aos Estados Unidos no início da década de 1980”).

Assim como nos contos das Mil e Uma Noites, há histórias dentro de histórias em Dois anos, oito meses e 28 noites; uma profusão de personagens peculiares e divertidos, com codinomes como A Dama Filósofa ou A Bebê da Tempestade. Embora o título “mil e uma noites” se deva ao fato de que os árabes não apreciavam números redondos, 2 anos, 8 meses e 28 dias passa a impressão de uma certa simetria ou equilíbrio (28-28).

Salman Rushdie nasceu em Mumbai (antiga Bombaim) e hoje é súdito britânico, portando inclusive o título de sir. Seu sobrenome, Rushdie, foi tomado pelo seu pai em homenagem a Ibn Rushd (Averróis). O escritor recebeu em 1988 uma fatwa (pronunciamento legal do islã) do Aiatolá Ruhollah Khomeini, então líder do Irã, ordenando sua execução após a publicação do seu livro Versos Satânicos, que foi considerado ofensivo ao poeta Maomé. Devido a isso, Salman Rushdie teve que viver no anonimato por alguns anos, sob proteção da polícia inglesa.

A fatwa parece ter dado mais notoriedade a Salman Rushdie, que acabou ganhando o prêmio British Book em 1995, com o romance seguinte após Versos Satânicos, O Último Suspiro do Mouro. A leitura de Dois Anos, Oito Meses e 28 Noites vale não só pela brincadeira com os nomes dos personagens, suas estranhezas e a fartura de referências diretas e indiretas, mas também pela escrita de Salman Rushdie, que consegue como ninguém conduzir um bom romance.