Empilhadas em hoteis, as vítimas da lama da Samarco tentam retomar a vida. Por Aline Frazão

Atualizado em 28 de novembro de 2015 às 12:14
Edimar de Sousa e a filha Mirela no hotel em Mariana para onde foi levado após perder tudo
Edimar de Sousa e a filha Mirela no hotel em Mariana para onde ele foi levado após perder tudo (FOTOS GUSTAVO FERREIRA)

 

A sensação que se tem, ao voltar a Mariana 22 dias após o rompimento da barragem da Samarco (controlada pela Vale e BHP Billiton), é de que os atingidos por essa tragédia, de tão tristes, estão conformados. Tristes por terem perdido tudo: casa, eletrodomésticos, móveis, roupas, carros. Conformados pois lhes foram poupadas as vidas.

Eles seguem até pacientes, mas para quem está acostumado com o sossego de uma zona rural, viver em um hotel na cidade não está sendo fácil.

— Se não me levarem pra uma casa logo, eu vou voltar.

— Voltar pra onde, seu José?

— Pra Paracatu. Nasci lá, cresci lá e quero morrer lá. Moro no curral que restou, mas aqui nesse hotel não fico.

José Patrocínio de Oliveira, aposentado de 86 anos, teve de deixar o distrito de Paracatu de Baixo com a mulher, filhos e netos. O amigo dele, Geraldo Jerônimo, também aposentado de 66 anos, sofre com a situação. Ele, que já tem pressão alta, não consegue dormir direito por causa do barulho da avenida onde fica o Hotel Pousada das Gerais. “Só tomando uma cachaça pra conseguir dormir esses dias”, diz ele, envergonhado.

A mulher de José Patrocínio, Maria do Carmo Pereira Ramos, de 54 anos, me leva até o quarto onde eles estão hospedados. São seis lances de escadas. “Por isso o Zé está doido pra ir embora. Ele não aguenta essas escadas aqui não. Eu também estou doida pra ir embora pra minha casa. Só choro aqui, toda hora quero chorar, aqui não tem nada pra fazer”, lamenta ela, depois de me dar um abraço forte e demorado.

Maria, José Patrocínio e mais dois filhos estão em um cômodo pequeno onde não há armário para guardar as roupas que ganharam e com somente três camas de solteiro.

“Não tenho nada pra fazer aqui. Lá em Paracatu eu acordava todo dia às 5 e meia da manhã. Ia buscar lenha, depois tratava das galinhas, tinha 58 cabeças de galinha que foram levadas pela enchente, cuidava dos três cachorros, fazia almoço, arrumava cozinha e arrumava minha casa. Depois eu ia pra aula. Eu tinha duas hortas, com muito quiabo…eu sou muito trabalhadeira, não aguento ficar aqui não”, diz Maria.

Os moradores de Paracatu não imaginavam o tamanho do estrago. Depois de avisados por um helicóptero de que teriam de deixar o local em cinco minutos, ficaram esperando do alto do morro a “enchente” passar para voltar para suas casas. “Foi como um filme de terror. A gente viu as casas sendo todas levadas pela lama, muita lama”, se recorda José Geraldo, filho mais novo do casal, que pediu à mãe para parar de chorar pelo menos três vezes enquanto eu estava lá. Para passar um pouco o tempo, e também a tristeza, Maria escreveu um poema sobre a tragédia.

Fui até outro hotel, o Brasil Real, onde estão hospedados Edimar de Sousa e os dois filhos. Eles são de Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana onde estão as barragens de rejeitos da Samarco e que foi devastado inteiramente. A mulher de Edimar estava no hospital, pois ia dar à luz naquele dia. Ela optou por ficar na casa da irmã, que mora em Mariana, pois teria um carro à disposição para o caso de alguma urgência. Perguntei-me se a empresa não deveria prestar todo apoio, cuidados especiais e assistência aos desabrigados. Mas pelo jeito, a uma grávida, não.

“As crianças e eu sentimos falta, mas foi melhor assim. Ela está bastante agitada. Por sorte, no dia da tragédia estava numa consulta médica aqui em Mariana. A barriga estava muito grande e é uma situação muito delicada”, me contou Edimar. Indagado sobre as condições da hospedagem, afirmou que a comida do outro local onde estavam hospedados era melhor. “Tivemos de sair de lá porque ele seria ocupado por outras pessoas”, falou. Nos despedimos enquanto as duas crianças disputavam uma maçã. “Vocês terão de dividir”, disse Edimar aos meninos.

Depois de denúncias de falta de transparência, a Samarco está tratando de outra maneira a imprensa com relação às visitas aos hotéis. Antes, não se podia entrar para falar com os desabrigados. Os funcionários da empresa eram vistos a todo momento recolhendo informação.

Em outro hotel, o Central, encontrei Claudia Alves limpando seu “cantinho”. A agente de saúde é de Bento Rodrigues e está hospedada com a irmã e a sobrinha. Os pais estão em outro quarto. “Nossa casa era grande em Bento, tinha nove cômodos e cada um tinha seu quarto”, afirma. Dividir o quarto e ter de guardar as roupas em sacolas e malas não é o maior problema. O que a preocupa é a saúde da mãe, já que ela é diabética e fruta não tem chegado lá. “Esse hotel estava fechado para reforma. A empresa [Samarco] conversou com a dona e viemos pra cá. Somos nós que fazemos o café da manhã e da tarde e não tem fruta alguma, só pão com manteiga, café com leite’.

As roupas empilhadas no corredor de hotel onde estão hospedadas famílias desabrigadas
As roupas empilhadas em corredor de hotel onde estão hospedadas famílias desabrigadas

 

O pai de Claudia não estava em condições de conversar. Apontou para o peito, onde disse doer, e se retirou. A mãe, Maria Lúcia, contou que se recorda da casa deles em Bento, mas que não vai mais chorar. “Agora é agradecer a Deus pela vida. Tenho vontade de agradecer a tanta gente que nos ajudou, com as doações e trabalhos voluntários. À Samarco não tenho nada a agradecer”, disse.

Fui embora sentindo o cheiro de mofo nos corredores. No caminho, passei pela cozinha e me encontrei com o lavador de carros José da Paixão. Ele estava com saudades de Bento. “Lá era muito bom. Sinto falta das hortaliças que eu pegava no quintal também”, disse, terminando seu almoço.

Segundo a Samarco, 1 265 pessoas já foram alocadas em hotéis e pousadas da região e “ninguém dormiu mais de uma noite no Ginásio Poliesportivo de Mariana”. A empresa não citou na nota o fato de o prefeito de Mariana, Duarte Junior, ter exigido um dia após a tragédia, que as famílias fossem retiradas de lá e levadas para esses estabelecimentos.

A mineradora informou ainda que até sexta-feira (27), 39 famílias já haviam se mudado para casas alugadas com mobília e eletrodomésticos. Fui até uma delas. Natália Aparecida, auxiliar de serviços gerais, foi uma das primeiras a ser transferida. Ela ainda não conseguiu voltar a trabalhar porque não tem com quem deixar a filha. Antes, a menina de 2 anos ficava com a avó, que está em outra casa alugada, longe da delas.

“A vida virou uma bagunça. Minha filha está tão agitada. Ela não pode sair da porta pra fora, e antes vivia solta pelo quintal. Em Bento todo mundo conhecia todo mundo, aqui não sei de ninguém e não posso confiar, e ainda tenho de arranjar uma creche. Não vou mais poder trabalhar à noite também, como sempre foi”, diz. A Samarco está enviando alimentos uma vez por semana, mas ela afirma que a carne ainda não havia chegado ali: “Eles prometeram um cartão, mas até agora nada”.

A tragédia já deixou 14 mortos e oito pessoas seguem desaparecidas. O Ministério Público exigiu que a Samarco pague mensalmente o valor de um salário mínimo para as famílias atingidas, além de uma cesta básica. A empresa garantiu que os cartões com o benefício começarão a ser entregues a partir do dia 3 de dezembro. Dinheiro que vai melhorar a situação das vítimas, mas não vai trazer Bento Rodrigues de volta. Os ex-moradores de Paracatu de Baixo exigem voltar para lá. A empresa está fazendo a limpeza do local, mas como a lama é muita, ainda não há previsão de quando isso será possível.

 

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Ruan, de 9 anos, no hotel
Ruan, de 9 anos, no hotel

 

Maria do Carmo, de Paracatu de Baixo, tenta dividir o espaço com o marido e dois filhos
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José da Paixão sente saudades do futebol e das hortaliças que tinha no quintal em Bento Rodrigues
José da Paixão sente saudades do futebol e das hortaliças que tinha no quintal em Bento Rodrigues

 

Uma das casas alugadas pela Samarco para os desabrigados
Uma das casas alugadas pela Samarco para os desabrigados

 

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