‘Entrevista com Escritores Mortos’ 2: Giacomo Casanova

Atualizado em 3 de julho de 2015 às 18:31

A “entrevista” abaixo faz parte de nossa série “Conversas com Escritores Mortos”. Como segundo entrevistado, selecionamos o célebre libertino italiano Giacomo Casanova (1725 – 1798). As frases abaixo foram retiradas de suas Memórias.

Casanova
Heath Ledger como Casanova no filme de 2005

Senhor Casanova, o que o motivou a escrever um livro de memórias?

Minhas memórias foram escritas a fim de consolar-me do terrível enfado que me consumia vagarosamente na Boêmia – e o qual, talvez me assassinaria em qualquer lugar, já que, mesmo que meu corpo tenha envelhecido, meu espírito e meus desejos continuavam tão jovens quanto antes.

E o texto serviu de consolo?

Sim. Quando me lembro de todos aqueles eventos, me sinto jovem novamente – e mais uma vez, sinto as delícias da juventude, apesar dos longos anos que me separam daquela época alegre.

Admito que sua vida foi digna de ser relatada.

Uma moça muito digna, certa vez, inspirou-me com o mais profundo afeto e me ofereceu o mais sábio dos conselhos. Se eu o houvesse seguido, e lucrado com ele, minha vida não haveria sido exposta a tantas tempestades; mas é verdade que, nesse caso, não valeria a pena escrever sobre ela.

Tempestades?

Agora, tantos anos depois de tudo o que aconteceu, penso que eu poderia ter sido mais feliz, e sou forçado a admitir que nós mesmos somos os autores da vasta maioria das nossas desgraças e mágoas, das quais reclamamos sem razão. Ah, é claro que minha vida foi tempestuosa. Penso que, se eu pudesse viver novamente, teria sido mais sábio; mas, então, não teria sido eu mesmo.

Então o senhor não se arrepende de nada?

Me arrependo de não ter dormido com Lucia, quando me hospedei na casa dos Montereale.

Quem era Lucia?

Uma perfeita ingenue; a criadinha camponesa de modos livres, sem quaisquer afetações ou marcas; uma criança da natureza que se sentava todas as manhãs na minha cama para me servir o desjejum. Tinha apenas quatorze anos, e se apaixonou por mim. Ofereceu-me seu corpo intocado – e eu fui estúpido o bastante para recusá-la.

Uma paixão platônica…

Nem tanto. Quando consideramos uma moça muito inocente, nosso cavalheirismo pode se estender até o sexo oral – sem que tenhamos que tirar a virgindade dela.

Então o senhor não dormiu com Lucia. Por que se arrepende?

Pouco depois da minha visita, ela fugiu com o mensageiro dos Montereale, um homem mau e violento. Eu a reencontrei em Amsterdã, pobre e arruinada, à beira da morte, vendendo seu corpo por um preço horrivelmente baixo. Transtornei-me, e o que me deixou mais infeliz foi pensar que ela se lembraria de mim com ódio, como a causa original de seus infortúnios.

Pobre moça.

Eu me orgulhei e me envaideci por ser virtuoso o bastante para deixá-la virgem, mas depois me arrependi, envergonhado daquela contenção. Prometi a mim mesmo que, no futuro, haveria de comportar-me de maneira mais sábia. Não basta ser um cavalheiro, é necessário ser generoso. Um homem generoso deve ter certeza de que deixará nas amantes uma recordação positiva do encontro que tiveram, e que a posição delas como mulheres será fortalecida com isso.

A partir de então, imagino que tenha desfrutado de muitas virgens.

Sim. Se há um aspecto que possa redimir um homem de seduzir uma virgem sem a intenção de desposá-la é que, dessa forma, as estará salvando de um destino pior, tratando-as de modo mais gentil do que a maioria, como parceiras sexuais no mesmo nível, e que a partir daí elas usarão seus conhecimentos com sabedoria. Fora isso, é realmente deselegante recusar suas carícias a uma bela menina que vem até sua cama para submeter-se a elas.

Faz sentido. Agora, o senhor se importaria em desmistificar algumas lendas que rondam sua figura e satisfazer nossa curiosidade? Dizem por aí que o senhor, um dos libertinos mais famosos de todos os tempos, foi expulso do colégio interno por ser encontrado na cama com outro rapaz…

Não pretendo negar. Sempre amei as mulheres, mas soube tirar proveito dos homens.

Conte-nos uma de suas experiências!

O nome dele era Ismail, e eu o conheci em Constantinopla. Era um homem rico, e eu fiquei hospedado em seu palácio. Eu tinha apenas dezenove anos na época. Quando flertou comigo, fui pego de surpresa e defendi-me declarando que não pertencia àquele credo. O bom camarada levou-me, então, até um lugar cuja atmosfera era quase mágica, com mulheres nuas e lindas. Eu o olhei e ele estava brincando consigo mesmo. Tal como ele, não me restou alternativa senão fazer o mesmo com o objeto ao meu alcance, a fim de extinguir a chama acesa pelas sereias – e Ismail triunfou ao descobrir que aquela nossa proximidade o condenava a ocupar o lugar do objeto distante, o qual eu não podia alcançar. Eu também tive de aceitar quando ele se voltou em outra posição… Teria sido falta de educação recusar. Eu poderia parecer ingrato, coisa que não faz parte da minha natureza.

Também dizem que o senhor, por um bom tempo, aproveitou-se de uma velha louca que acreditava que o senhor era um feiticeiro que a engravidaria.

Ah, é claro! Você se refere à querida Marquesa! Aproveite-me dela? Nem tanto. A Marquesa e seu círculo de amigos mais chegados tinham planos quiméricos, e ao criar neles esperanças de sucesso, eu também esperava curá-los daquela loucura e acabar com suas ilusões… Iludia-os para que ficassem mais espertos, e não creio que eu mesmo seja culpado, pois o que me impelia não era a avareza.

É claro, é claro. Mudando de assunto, por que o senhor nunca se casou?

Tenho um bom amigo que nunca se casou, e quando lhe perguntavam o por que disso ele respondia que conhecia as mulheres e sabia que elas nasceram para ser tiranas ou escravas, e que ele não gostaria nem de ser tirânico com uma mulher nem de submeter-se às ordens de outra.

Que desesperança!

Não fique magoada. Deixe-me falar de outro amigo, para contrabalancear. Blondel foi meu melhor amigo, e inclusive dividimos algumas amantes. Um belo dia, o bom rapaz se casou, e daí em diante passou a considerar sua esposa sua amante. Dizia que isso mantinha a chama do amor acesa e que, se ele nunca havia encontrado uma amante digna de ser sua esposa, deliciava-se por possuir uma esposa digna de ser sua amante.

Restaurou minhas esperanças. E o senhor?

Eu amei as mulheres loucamente, mas sempre preferi a liberdade. Todas as vezes que estive prestes a perdê-la, o destino me salvou.

O senhor já se apaixonou de verdade?

Inúmeras vezes! Duzentas, mais ou menos.

Duzentas?!

Sim. Sem amor, esse grande negócio não passa de algo desprezível. Pobre de quem pensa que os prazeres de Vênus muito valem, a menos que venham de dois corações que se amam e que estão em perfeita harmonia!

Mas é um número enorme! Algum desses amores durou?

Eu amei muitas mulheres, mas o amor não é nada mais do que uma espécie de curiosidade. É isso que me faz ter certeza de que, uma vez que a curiosidade é satisfeita, o amor acaba.

Então o senhor nunca amou de verdade…

Aconteceu uma única vez, na verdade. Ela se chamava Henriette. Quer dizer, vou chamá-la de Henriette (pois, tendo sido Henriette uma dama da mais alta reputação, não posso arriscar-me a revelar sua identidade). Quem acredita que uma mulher não é capaz de fazer um homem feliz todo o tempo, vinte e quatro horas por dia, jamais conheceu uma Henriette… É impossível conceber a extensão de minha felicidade quando estávamos juntos.

Como vocês se conheceram?

Eu me hospedei, certa vez, em uma pousada. Um capitão húngaro também havia se hospedado lá, e estava acompanhado de um jovem francês. Um belo dia, convidei-os para o desjejum e pousei meu olhar no acompanhante do capitão, e não tive dúvida que pertencia ao sexo sem o qual os homens seriam os animais mais miseráveis do mundo. Apaixonei-me imediatamente por aquela dama selvagem e aristocrática e a arrebatei do capitão…

O romance durou muito tempo?

Não. Ela estava fugindo de um marido que não gostava, mas voltou para ele eventualmente. “Quem acha que é possível ser feliz a vida inteira não sabe o que fala”, disse-me ela, um dia. “Para ser verdadeiro, o prazer tem que chegar ao fim”.

O senhor a esqueceu?

Antes de partir, Henriette deixou um recado na janela do hotel em que vivemos nosso idílio amoroso: “Você também esquecerá Henriette”. Eu responderia: “Saiba, madame, que é possível a um francês esquecê-la, mas um italiano, a julgar por mim mesmo, nunca teria esse poder”.

É uma bela história.

Sim, é claro, Cheguei a pensar que havia sido perfeitamente altruísta quanto a Henriette, já que a deixei partir sem oferecer resistência alguma. Mas a verdade é que o amor sempre nos torna egoístas, uma vez que todos os sacrifícios que fazemos pela pessoa amada são, em última análise, referentes aos nossos desejos.

Faz sentido. O senhor tem mais alguma história divertida para nos contar?

Tenho um conselho. Sabe, vez ou outra a luz está muito sutil, o ambiente está lúgubre, e… Bem, sugiro aos homens que sempre certifiquem-se de que é com uma mulher que estão lidando! Dizem que, durante a noite, todos os gatos são cinzentos.

Experiência própria?

Infelizmente.

Certa vez, estive em uma carruagem com um jovem conde francês e com uma dançarina. Na total escuridão, procurei a mão dela e, depois de beijá-la, coloquei-a entre minhas pernas. A suave mãozinha cedeu, mas bem no momento crucial, o conde rompeu o silêncio: “Agradeço ao senhor, meu caro amigo, por este aperto de mão italiano, tão cortês e inesperado”, e caiu na risada.

Que desagradável! Imagino o constrangimento que o senhor sentiu.

Não me senti tão constrangido assim. Eu e o conde acabamos nos tornando amigos íntimos.

Oh… E quanto a religião? O senhor seguiu alguma?

É claro! Sou um homem completo, e sou um cristão.

Sério?

Sou um católico fervoroso! Pois, quando confessamos nossos crimes aos nossos padres, eles são obrigados a nos absolver.

Eu sabia que havia uma dose de interesse pessoal.

O primeiro motivo é sempre interesse pessoal.

Certamente.

O fato é que devemos viver como bem entendermos – o importante é se arrepender no final. Viva como um filósofo, morra como um cristão.