‘Estamos vivendo um momento de caça às bruxas bem perigoso’, diz juíza que sofreu ataques

Atualizado em 18 de janeiro de 2017 às 8:45
Valdete Souto Severo
Valdete Souto Severo

Publicado no Sul21.

POR FERNANDA CANOFRE

 

No começo do ano, Valdete Souto Severo, juíza do trabalho da 4ª região, em Porto Alegre, foi sorteada para avaliar uma liminar de sindicatos ligados a cinco fundações estaduais em vias de extinção, desde a aprovação do projeto apresentado pelo governo José Ivo Sartori (PMDB) em uma votação polêmica no final de dezembro, na Assembleia Legislativa. Os sindicatos pediam que as demissões — anunciadas com “urgência” pelo governo do Estado — fossem paradas até acordo coletivo. A magistrada acolheu o pedido. Ela não imaginava, no entanto, que teria ali um marco estranho em sua carreira.

Apesar de não ter sido a única juíza a determinar suspensão de demissões até acordo coletivo, no caso das fundações, Valdete foi a que mais sofreu ataques nas redes sociais. Fotos suas começaram a circular com adjetivos como “juíza de merda”, “puta safada”, “vagabunda”. Um site ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL) impulsionou a reação contrária à ela qualificando sua decisão como “de extrema esquerda”. Em seu perfil em uma rede social, a juíza se manifestou afirmando: “Não se trata, portanto, de concordar ou não com determinada decisão judicial. Trata-se de uma sórdida tentativa de aniquilação do que o outro representa em sua condição humana”.

Juíza do trabalho desde 2001, ela diz que sempre quis ser juíza, mas só optou pelo caminho trabalhista depois de atuar com outra magistrada, na área criminal, que havia sido servidora da Justiça do Trabalho e a incentivou. Durante a faculdade, enquanto acompanhava a juíza à tarde, Valdete ainda se dividia entre o curso de Direito à noite e dava aulas para crianças em idade de alfabetização pela manhã. “Uma correria! Eu sinto falta, adorava dar aula para os pequenos”, conta ela.

Mas na justiça do trabalho, ela parece ter encontrado sua vocação. Integrante do Fórum Nacional em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Afetados Pelas Terceirizações, Valdete também tem feito do combate às terceirizações uma de suas principais pautas e se tornou uma referência na área. Fora do país, ela conversou com o Sul21 por telefone sobre o significado da extinção de fundações no mundo do trabalho, os ataques que sofreu e por que a justiça do trabalho é vista como vilã no Brasil. Confira:

Sul21: Depois da publicação da ordem judicial proibindo demissões nas fundações estaduais até acordo coletivo, a senhora começou a sofrer ataques pela internet. Um texto que circulou em uma publicação vinculada ao Movimento Brasil Livre (MBL) a classifica como membro da “elite jurídica”, com “ideias de extrema esquerda”. Pode falar um pouco sobre essa situação?
Valdete Souto Severo: O MBL é um movimento organizado com objetivos específicos, dentre os quais auxiliar a promover o completo desmanche do arremedo de Estado social que duramente conquistamos no país. Então, faz parte disso atacar quem trabalha com os direitos sociais. Falar em “ideias de extrema esquerda” é risível. Aliás, essa insistência em rotular as pessoas que se opõem ao senso comum do capital como “petistas” ou “de esquerda” geralmente revela apenas um modo de tentar desqualificar o discurso. Talvez eu até quisesse ser assim identificada, mas sou juíza. Trabalho, portanto, desde o sistema, que é capitalista e que se insistirmos nesses dualismos reducionistas, alinha-se claramente à direita.
A intensidade e a agressividade das manifestações contra a decisão, sem sequer fazer alusão aos termos dela, mas centrando forças em ofensas pessoais e misóginas mostra que o direito social realmente enfrenta um período de franca oposição e todos aqueles que o defendem estão na mira de quem o quer destruir. Esse episódio que ocorreu comigo já se repetiu com outros colegas. Estamos vivendo um momento de caça às bruxas bem perigoso. Temos que ter atenção a isso. É o fenômeno da reação da massa, que Hannah Arendt enfrenta tão bem em sua obra, acaba criando legiões de imbecis.
Pessoas que ofendem sem conhecer, criticam sem ler, reproduzem pensamentos prontos, muitos dos quais as atingem, ou seja, concretamente significam perda até mesmo de direitos de liberdade, tipicamente liberais (ou “de direita” como querem alguns). Se alguém deve ser ofendido porque decide em um processo, também pode ser agredido na rua, linchado, e dai para frente perdemos os limites. Quem agride hoje, poderá ser agredido amanhã. Então, se revoltar contra isso é defender o direito de manifestação e de atuação profissional de todas as pessoas.

Sul21: A senhora é juíza do trabalho há 15 anos. Já tinhas vivido algo parecido antes por outros processos que julgastes?

Valdete Souto Severo: Já sofri pressão ou incentivo para alterar decisões de forma mais interna, corporativa, digamos assim, mas nunca ataques pessoais como desta vez.

Sul21: Qual foi a sua primeira reação ao se deparar com as mensagens que estavam circulando na internet?

Valdete Souto Severo: A primeira coisa que eu fiz foi falar com o meu filho, porque ele tem 16 anos e eu achei que poderia chegar até ele aquelas ofensas. E realmente, ele já tinha visto. Mas conversei, ele foi bem querido e me deu um apoio muito legal. Depois disso, eu não estava acompanhando nada, mas fiquei sabendo por um colega da Associação [dos Magistrados da Justiça do Trabalho] que me contatou dizendo que estava à disposição para alguma reação, na forma de nota ou até de ação que coibisse que as ofensas continuassem ocorrendo. Eu tentei não ficar olhando essas páginas, mas eu fiquei revoltada. Esse foi o sentimento. Eu não fiquei tão agredida assim pessoalmente, porque as pessoas que estavam falando ali não me conhecem e eram ofensas pessoais, não eram tanto em relação à decisão. Mas achei que tinha sim que tomar alguma atitude porque foi uma manifestação de misoginia. É machismo puro, é uma vontade de desconstituir o interlocutor sem dialogar. O sentimento é de revolta, fiquei muito indignada com o que aconteceu.

Sul21: A senhora acha que se o caso envolvesse um juiz, um homem, teria gerado o mesmo nível de ataque?

Valdete Souto Severo: Eu falei disso com uma amiga que acha que sim, que teria uma ofensiva pessoal se fosse homem. Eu acho que não. Acho que tem uma questão de machismo muito forte. Quando uma mulher faz uma coisa que desagrada a primeira reação sempre é desqualificar e sempre é um ataque à feminilidade: “puta”, “vagabunda”, “safada”. Acho difícil acreditar que um homem sofreria esse tipo de ofensa se tivesse proferido uma decisão, que na verdade nem foi inovadora. Quando eu proferi a decisão nesses processos, outros dois colegas já haviam se manifestado nesse sentido e já havia inclusive uma decisão do Tribunal [do Trabalho] confirmando liminares similares àquelas que eu proferi.

(…)