Publicado no Sul21.
POR FERNANDA CANOFRE
No começo do ano, Valdete Souto Severo, juíza do trabalho da 4ª região, em Porto Alegre, foi sorteada para avaliar uma liminar de sindicatos ligados a cinco fundações estaduais em vias de extinção, desde a aprovação do projeto apresentado pelo governo José Ivo Sartori (PMDB) em uma votação polêmica no final de dezembro, na Assembleia Legislativa. Os sindicatos pediam que as demissões — anunciadas com “urgência” pelo governo do Estado — fossem paradas até acordo coletivo. A magistrada acolheu o pedido. Ela não imaginava, no entanto, que teria ali um marco estranho em sua carreira.
Apesar de não ter sido a única juíza a determinar suspensão de demissões até acordo coletivo, no caso das fundações, Valdete foi a que mais sofreu ataques nas redes sociais. Fotos suas começaram a circular com adjetivos como “juíza de merda”, “puta safada”, “vagabunda”. Um site ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL) impulsionou a reação contrária à ela qualificando sua decisão como “de extrema esquerda”. Em seu perfil em uma rede social, a juíza se manifestou afirmando: “Não se trata, portanto, de concordar ou não com determinada decisão judicial. Trata-se de uma sórdida tentativa de aniquilação do que o outro representa em sua condição humana”.
Juíza do trabalho desde 2001, ela diz que sempre quis ser juíza, mas só optou pelo caminho trabalhista depois de atuar com outra magistrada, na área criminal, que havia sido servidora da Justiça do Trabalho e a incentivou. Durante a faculdade, enquanto acompanhava a juíza à tarde, Valdete ainda se dividia entre o curso de Direito à noite e dava aulas para crianças em idade de alfabetização pela manhã. “Uma correria! Eu sinto falta, adorava dar aula para os pequenos”, conta ela.
Mas na justiça do trabalho, ela parece ter encontrado sua vocação. Integrante do Fórum Nacional em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Afetados Pelas Terceirizações, Valdete também tem feito do combate às terceirizações uma de suas principais pautas e se tornou uma referência na área. Fora do país, ela conversou com o Sul21 por telefone sobre o significado da extinção de fundações no mundo do trabalho, os ataques que sofreu e por que a justiça do trabalho é vista como vilã no Brasil. Confira:
Sul21: A senhora é juíza do trabalho há 15 anos. Já tinhas vivido algo parecido antes por outros processos que julgastes?
Valdete Souto Severo: Já sofri pressão ou incentivo para alterar decisões de forma mais interna, corporativa, digamos assim, mas nunca ataques pessoais como desta vez.
Sul21: Qual foi a sua primeira reação ao se deparar com as mensagens que estavam circulando na internet?
Valdete Souto Severo: A primeira coisa que eu fiz foi falar com o meu filho, porque ele tem 16 anos e eu achei que poderia chegar até ele aquelas ofensas. E realmente, ele já tinha visto. Mas conversei, ele foi bem querido e me deu um apoio muito legal. Depois disso, eu não estava acompanhando nada, mas fiquei sabendo por um colega da Associação [dos Magistrados da Justiça do Trabalho] que me contatou dizendo que estava à disposição para alguma reação, na forma de nota ou até de ação que coibisse que as ofensas continuassem ocorrendo. Eu tentei não ficar olhando essas páginas, mas eu fiquei revoltada. Esse foi o sentimento. Eu não fiquei tão agredida assim pessoalmente, porque as pessoas que estavam falando ali não me conhecem e eram ofensas pessoais, não eram tanto em relação à decisão. Mas achei que tinha sim que tomar alguma atitude porque foi uma manifestação de misoginia. É machismo puro, é uma vontade de desconstituir o interlocutor sem dialogar. O sentimento é de revolta, fiquei muito indignada com o que aconteceu.
Sul21: A senhora acha que se o caso envolvesse um juiz, um homem, teria gerado o mesmo nível de ataque?
Valdete Souto Severo: Eu falei disso com uma amiga que acha que sim, que teria uma ofensiva pessoal se fosse homem. Eu acho que não. Acho que tem uma questão de machismo muito forte. Quando uma mulher faz uma coisa que desagrada a primeira reação sempre é desqualificar e sempre é um ataque à feminilidade: “puta”, “vagabunda”, “safada”. Acho difícil acreditar que um homem sofreria esse tipo de ofensa se tivesse proferido uma decisão, que na verdade nem foi inovadora. Quando eu proferi a decisão nesses processos, outros dois colegas já haviam se manifestado nesse sentido e já havia inclusive uma decisão do Tribunal [do Trabalho] confirmando liminares similares àquelas que eu proferi.
(…)