“Falar que a cracolândia é fruto da miséria social é, no mínimo, preconceituoso”, diz escritor ex-crackeiro. Por Zambarda

Atualizado em 9 de junho de 2017 às 9:51
Márcio Américo

 

Márcio Américo tem 53 anos e é escritor, ator e comediante, sobretudo em shows de stand-up.

Atualmente ele tem um canal no YouTube onde critica sem dó pastores evangélicos, políticos e outras vozes da sociedade.

Recentemente ele fez um vídeo que viralizou falando que foi viciado em crack, viveu na Cracolândia.

Para Américo, tanto a esquerda quanto a direita erram no debate, que foi transformado num “fla-flu político” em sua opinião.

Márcio Américo também diz no YouTube que não se comenta sobre estupros e abusos sexuais que ocorrem dentro da Cracolândia. Para ele, a falta de conteúdo enfraquece o debate.

Ele é autor do livro “Meninos de Kichute” e lançou o filme “Magal e os Formigas” (2016). Confira a entrevista.

DCM: Você diz que vivenciou a Cracolândia como viciado. Por quanto tempo você ficou lá? 

Márcio Américo: Passei cerca de três anos por lá. Nunca morei ali, mas frequentava durante longos períodos. Foi no inicio do ano 2000. A doença da dependência química não destrói só o dependente, mas também as pessoas ao redor dele. Ela é como uma bomba com um raio muito ampliado.

Eu só consegui sair de lá graças ao empenho da minha família que me encaminhou para uma fazenda terapêutica onde, além de ficar afastado das drogas, pude aprender um pouco mais sobre esta doença e assim ficar limpo.

DCM: No vídeo você diz que a Cracolândia virou briga ideológica entre grupos como o “Craco Resiste”, das esquerdas, e o prefeito Doria, que fez demolição de prédio com pessoas dentro. A discussão sobre a Cracolândia, portanto, é sobre desocupação de espaços públicos, que favorecem o consumo de drogas? Ou é outra coisa?

MA: A discussão da Cracolândia deveria ser sobre como tratar o dependente químico e não sobre política. Não é somente a Cracolândia que favorece o consumo de drogas, o problema é que ele abrange um espaço público.

Mas há outros lugares onde as pessoas consomem drogas. Só que não tem esta mesma visibilidade.

DCM: Você acredita que a esquerda é muito pouco crítica ao tráfico de drogas? Por qual razão?

MA: Talvez porque as Farc ainda existem durante muito tempo graças ao tráfico de cocaína, chegando mesmo a ter seus próprios laboratórios.

Mas a direta não fica atrás.

A direita, por exemplo, proibiu as bebidas alcoólicas nos Estados Unidos abrindo com isso espaço para o surgimento da máfia. O combate ao tráfico de drogas e a intensificação no tratamento de dependentes deveria ser o suficiente para uma trégua entre direita e esquerda.

Algumas drogas devem ser mesmo proibidas, como o crack, a heroína. Mas não basta proibir. É preciso ter políticas publicas sérias para o tratamento dos dependentes.

DCM: A expansão da Cracolândia é fruto do abandono do centro de São Paulo?

MA: É fruto da permissividade. A Craco não começou do dia pra noite. São Paulo não amanheceu com centenas de viciados caminhando pelo centro velho da cidade.

Aquilo foi um processo gradativo que foi ostensivamente ignorado por todos os prefeitos. Até hoje não foi tomada uma só medida visando acabar com aquele mercado de drogas a céu aberto.

DCM: Qual sua opinião sobre o Programa Braços Abertos do ex-prefeito Fernando Haddad?

MA: Não posso falar sobre isso até porque não conheço o projeto, o que sei é que parece não ter mudado muita coisa. Qualquer projeto que não tenha em vista combater a dependência não terá sucesso.

Programas que vão até a Cracolândia bater papinho com viciado, passar a mão em suas cabeças, dizer que o compreende… Isso não resolve nada e, pelo contrario, só cria no dependente a certeza de que ele tem o direito de fumar seu crack em paz.

Afinal, ele é fruto da miséria e isso por si é uma ótima justificativa para estragar a própria vida e a vida de sua família. Gostaria que estes ativistas que vão lá coçar as costas de dependente, mostrassem à sociedade quantos doentes eles conseguiram recuperar. Mostrasse quantos estão limpos graças ao servicinho deles.

DCM: Você criticou, no YouTube, a mensagem do médico Dráuzio Varella, que atribuiu a formação da Cracolândia à miséria social. Você diz que falta informação de qualidade sobre os reais malefícios das drogas. É uma falha da educação?

MA: Dizer que a Cracolândia é fruto da miséria social é no mínimo preconceituoso. É como se as únicas pessoas que entram na Cracolândia são os miseráveis, o que não é verdade.

Lá tem de tudo: advogados, médicos, professores, atores, empresários. O crack é uma droga bem democrática. Sim, há uma falha muito grande na educação e falo de um modo geral. Falta informação para família, para o dependente e para a sociedade.

Muitas pessoas ainda confundem bêbado com alcoólatra, simplesmente não sabem a diferença e não sabendo a diferença não saberão identificar em casa uma pessoa que manifeste um padrão de dependente alcoólico. A consequência pra pessoa não será tratada e sua doenças progredirá até que fique insustentável.

A maioria das pessoas que estão lá achando que estão ajudando, na verdade só está alimentando a doença daquelas pessoas. Reduzir os danos causados pelas drogas não reduz a doença. É como tentar enxugar a poça d’água e não consertar a goteira.

DCM: Você também diz que, de quem é internado, só 7% realmente se recuperam. Por que o índice é tão baixo?

MA: Não sei dizer, mas grosso modo posso dizer que os métodos terapêuticos no Brasil precisam no mínimo, serem reavaliados.  Eu passei cinco meses em uma fazenda terapêutica e a única coisa boa que tinha lá eram as reuniões de Narcóticos Anônimos (NA) onde pude aprender sobre a dependência e os passos para ficar limpo.

No mais era só autoritarismo e uma tentativa constante de se anular o ego dos internos. Alguns que não tinham facilidade para absorver a informação e acabavam desistindo e voltando a ativa.

Algumas clinicas tem um método terapêutico muito parecido com o de encontro de vendedores, onde palestrantes treinados em dar injeção de ânimo falam com os dependentes. Eles organizam performances com os doentes, jogos, dinâmicas, mas nada disto permanece quando saem dali.

Existe um termo muito conhecido entre os dependentes que é “piolho de clinica” ou “piolho de fazenda” que é o interno contumaz. Ele é a prova viva de que a recuperação é rara e trabalhosa.

DCM: Quais são as falhas da imprensa na cobertura da Cracolândia na sua opinião?

MA: É querer transformar a Cracolândia num fla-flu político.