O texto abaixo foi publicado na bbc.
Horas antes do início do último jogo do Brasil, na terça-feira, o que se ouviu em uma região do Recife, uma das 12 cidades-sede da Copa do Mundo, não foram fogos de artifício, mas gritos e tiros de balas de borracha.
Com grande repercussão nas redes sociais, a ação de reintegração de posse do Cais José Estelita – ocupado por um grupo de 100 pessoas desde o mês passado – foi duramente condenada pela Anistia Internacional, pelo Ministério Público de Pernambuco e pela Universidade Federal do estado (UFPE).
Fotos e vídeos que mostram crianças correndo de tiros e grávidas intoxicadas por bombas de gás lacrimogêneo atiradas pela tropa de choque e pela cavalaria da Polícia Militar ganharam rapidamente o Facebook e o YouTube por meio das hashtags #ocupeestelita e #resisteestelita.
Acampada desde o dia 3, Girlayne Nascimento, 23, está grávida de seis meses e disse à BBC Brasil ter respirado gás lacrimogêneo.
“A gente acordou às 5h da manhã com os policiais invadindo. Fui para o lado de fora porque estou grávida, não podia levar bala”, relata. “Não adiantou, porque a fumaça se espalhou por todos os lados. Fizeram meu bebê respirar gás lacrimogêneo.”
Girlayne, que diz ter ido para a ocupação por “amor à cidade e às pessoas”, afirma que chegou a ser ameaçada por uma policial. “Vi que eles estavam sendo agressivos com meninos de rua ali perto e fui intervir. Uma policial veio para cima de mim com tudo, dizendo que ia me prender e que se eu eu não estivesse grávida eu ia ver o que era bom.”
Procurada pela reportagem, a Polícia Militar do Estado negou o uso de violência — e não comentou o caso de Girlayne. A corporação disse que a participação da PM foi “legítima” e um “êxito”.
“A equipe fez uso de força policial necessária, motivada pela resistência dos ocupantes do imóvel, que ameaçaram os oficiais de justiça e os militares presentes na ação”.
Ainda segundo a corporação, “diversos manifestantes [estavam] com os rostos cobertos por camisas e máscaras improvisadas, usando do anonimato para investidas contra os PMs”.
Em comunicado oficial, a prefeitura do Recife informou “que o melhor caminho para a desocupação do terreno seria através de uma solução negociada e pacífica.”
Mediador entre as demandas da ocupação e o poder público, o secretário executivo de Justiça e Direitos Humanos do estado, Paulo Roberto Xavier de Moraes, não foi encontrado.
“Ele está incomunicável porque está viajando com a família”, limitou-se a informar sua equipe.
Até o fechamento desta reportagem, a secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Estado também não se pronunciou.
Foi a advogada Liana Lins quem retirou Girlayne do cerco policial. “Ela estava muito nervosa. Mesmo grávida, apóia o movimento e tem apoio de todos. Mas quem sofreu não foi só ela. Massacraram um monte de jovens na minha frente e não me deixaram fazer nada”, afirma.
“Sou advogada da ocupação e represento quem está lá. Os policiais não tinham identificação (nas fardas) e me impediram de entrar. Por quê? Porque não tinham interesse na saída pacífica”, disse à BBC Brasil Liana, que também é professora da UFPE.
Um vídeo publicado no YouTube mostra um policial batendo com cassetete em sua perna direita.
A polícia nega a falta de nomes nas fardas. Segundo a nota enviada, a equipe estava “totalmente identificada”.
Os donos do terreno defenderam, também em nota, que o uso da força policial foi necessário para o cumprimento do mandado de reintegração. “Esse procedimento é inerente ao estado democrático, onde o direito de propriedade deve ser protegido”, diz o texto.
O publicitário Sergio Urt, 41, participa da movimentação desde 2012 e é um dos autores de uma ação popular movida contra o empreendimento imobiliário.
“Desde o leilão esta ação está sendo contestada na justiça. Tanto que o alvará de demolição de galpões (para a construção dos imóveis) foi suspenso. Mas esse tipo de brutalidade fortalece. Saímos do terreno, mas agora estamos em frente”.
Desde a desocupação, um grupo de 30 pessoas (aproximadamente metade dos presentes na ocupação inicial) se abriga sob um viaduto colado ao terreno.
O jornal inglês The Guardian repercutiu a ação policial em Recife, informando que “diversas pessoas foram feridas por balas de borracha e bombas de gás”. Entidades como Anistia Internacional, Universidade Federal de Pernambuco e Ministério Público também emitiram notas condenando a violência policial. Leia trechos abaixo:
Anistia: “Os manifestantes estavam em negociação com autoridades locais, com acompanhamento do Ministério Público, e havia o compromisso de que qualquer reintegração de posse teria um aviso prévio de 48 horas. Há denúncias de manifestantes feridos, equipamentos confiscados, destruição do acampamento e pessoas detidas sob a acusação de formação de quadrilha. A Anistia Internacional pede a investigação imediata dos abusos cometidos pela Polícia Militar e que seja retomada a negociação com os participantes da ocupação.”
UFPE: “A Universidade Federal de Pernambuco, diante do uso da força policial contra os manifestantes do Cais José Estelita, expressa sua estranheza e indignação pelo ocorrido, que desrespeita frontalmente o acordo envolvendo diversas instituições, a Prefeitura do Recife e os empreendedores. Desta forma, a UFPE registra sua preocupação quanto ao futuro das negociações iniciadas, que tinham como objetivo a defesa de uma cidade melhor, mais humana e mais inclusiva”.
MPF: “O mandado de reintegração de posse foi cumprido de forma arbitrária e com medidas típicas de cumprimento de ordens contra criminosos, sem conhecimento prévio do Ministério Público e dos representantes do movimento de ocupação, descumprindo todos os protocolos de execução de ordens de reintegração de posse das secretarias de Defesa Social e de Direitos Humanos, que visam à desocupação pacífica e à garantia da integridade física dos ocupantes.”