“Com o apartheid, Israel nunca construirá a paz”: uma entrevista de Zygmunt Bauman

Atualizado em 31 de outubro de 2014 às 10:55
Bauman
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Publicado no Unisinos.

 

A amargura do intelectual polonês de origem judaica. Tendo fugido do Holocausto, ele não poupa críticas ao Hamas e a Netanyahu: “Eles pensam na vingança, não na convivência. Infelizmente, está acontecendo o que estava amplamente previsto. A Shoah é a prova daquilo que os homens são capazes de fazer a outros seres humanos em nome dos seus interesses. Uma lição nunca leva seriamente em consideração.”

“Aquilo que estamos assistindo hoje é um espetáculo triste: os descendentes das vítimas dos guetos nazistas tentam transformar a Faixa de Gaza em outro gueto.” Quem diz isso não é um palestino furioso, mas Zygmunt Bauman, um dos principais intelectuais contemporâneos, de família judaica que escapou do Holocausto ordenado por  Hitler, graças a uma tempestiva fuga para a URSSem 1939.

Bauman tem 88 anos, seu pai era um granítico sionista e, ao longo dos anos, eviscerou como poucos a aberração e as consequências da Shoah. Até agora, o grande estudioso polonês não quisera se expressar publicamente sobre o recrudescimento do abissal conflito israelense-palestino.

Mas agora, depois de ter se referido à questão há alguns dias no Futura Festival de Civitanova Marche, em um encontro organizado por Massimo Arcangeli, Bauman confessa a sua amargura nesta entrevista ao La Repubblica.

Professor Bauman, o senhor é um dos maiores intelectuais contemporâneos e é de origem judaica. Qual foi a sua reação à ofensiva israelense em Gaza, que até agora provocou quase dois mil mortos, muitos deles civis?

Isso não representa nada de novo. Está acontecendo o que tinha sido amplamente previsto. Por muitos anos, israelenses e palestinos viveram em um campo minado, prestes a explodir, mesmo que nunca saibamos quando. No caso do conflito israelense-palestino, foi a prática do apartheid – nos termos de separação territorial exacerbada pela recusa ao diálogo, substituído pelas armas – que sedimentou e atiçou essa situação explosiva. Como escreveu o estudioso Göran Rosenberg no jornal sueco Expressen no dia 8 de julho, antes da invasão deGaza, Israel pratica o apartheid recorrendo a “dois sistemas judiciários claramente diferentes: um para os colonos israelenses ilegais e outro para os palestinos ‘foras da lei’.

Além disso, quando o exército israelense acreditou ter identificado alguns suspeitos palestinos [na caça aos responsáveis pelo homicídio de três adolescentes israelenses sequestrados na Cisjordânia em junho passado], pôs sob ferro e fogo as casas dos seus pais. Ao contrário, quando os suspeitos eram judeus [pelo caso posterior do menino palestino queimado vivo], não aconteceu nada de tudo isso. Este é o apartheid: uma justiça que muda com base nas pessoas. Sem falar nos territórios e nas estradas reservadas apenas a poucos”. E eu acrescento: os governantes israelenses insistem, com razão, no direito do próprio país viver em segurança. Mas o seu erro trágico reside no fato de que concedem esse direito só a uma parte da população do território que controlam, negando-o aos outros.

Como o senhor mesmo destaca, no entanto, Israel deve defender a sua existência ameaçada pelo Hamas. Há quem diga, como os EUA, que a reação do Estado judaico contra Gaza é dura, mas necessária, e quem a julgue como excessiva e “desproporcional”. O que o senhor acha?

E como seria uma reação violenta “proporcional”? A violência freia a violência como a gasolina no fogo. Quem comete violência, de ambas as partes, compartilha o compromisso de não apagar o incêndio. No entanto, a sabedoria popular (quando não está cega pelas paixões) nos lembra: “Quem semeia vento colhe tempestades”. Essa é a lógica da vingança, não da convivência. Das armas, não do diálogo. De maneira mais ou menos explícita, é cômodo a ambos os lados do conflito a violência do adversário para revigorar as suas próprias posições. E e o resultado é: tanto o Hamas quanto o governo israelense, tendo concordado que a violência é o único remédio para a violência, defendem que o diálogo é inútil. Ironicamente, mas também dramaticamente, ambos poderiam ter razão.

O que o senhor pensa, especificamente, do primeiro-ministro israelense, Netanyahu, e do seu governo? Ele cometeu erros?

Netanyahu e os seus associados, e ainda mais os israelenses que anseiam pelo seu próprio posto, esforçam-se para fomentar o desejo de vingança contra os seus adversários. Espalham sementes de ódio, porque temem que o ódio do passado enfraqueça. À luz da sua estratégia, esses não são “erros”. Os governantes israelenses têm mais medo da paz do que da guerra. Além disso, eles nunca aprenderam a arte de governar em contextos pacíficos. E, ao longo dos anos, conseguiram contaminar grande parte de Israel com a sua abordagem. A insegurança é a sua melhor, e talvez única, vantagem política. E talvez vencerão facilmente as próximas eleições aproveitando-se dos medos dos israelenses e do ódio dos vizinhos, que fizeram de tudo para fortalecer.

No passado, o senhor foi um crítico do sionismo e do uso que Israel faz da tragédia do Holocausto para justificar as suas ofensivas militares. O senhor ainda pensa assim?

Raramente a vitimização enobrece as suas vítimas. Ou, melhor, quase nunca. Muito frequentemente, no entanto, provoca uma única arte, que é a do sentir-se perseguido. Israel, nascido depois do extermínio nazista contra os judeus, não é uma exceção. Estamos diante de um triste espetáculo: os descendentes das vítimas nos guetos tentam transformar a Faixa de Gaza em um gueto que beira a perfeição (acesso bloqueado na entrada e na saída, pobreza, limitações), fazendo com que alguns tomem o seu testemunho no futuro.

A esse respeito, o que o senhor pensa do silêncio de políticos e intelectuais europeus sobre o conflito que explodiu novamente em Gaza?

Acima de tudo, não existe a “comunidade internacional” de que falam norte-americanos e europeus. Estão em jogo apenas coalizões extemporâneas, ditadas por interesses particulares. Em segundo lugar, como observou Ivan Krastev, celebrando o centenário do início da Grande Guerra, nós, europeus, temos bem em mente que uma reação “excessiva”, como a do homicídio de Francisco Ferdinando, levou à catástrofe “que ninguém queria ou esperava”.

O senhor escreveu no passado que a sociedade moderna não aprendeu a gélida lição do Holocausto. Esse conceito também pode ser aplicado ao conflito israelense-palestino?

As lições do Holocausto são muitas. Mas pouquíssimas delas foram seriamente levadas em consideração. E muito menos foram aprendidas – sem falar naquelas que realmente foram postas em prática. A mais importante dessas lições é: o Holocausto é a prova inquietante daquilo que os humanos são capazes de fazer a outros seres humanos em nome dos seus próprios interesses.

Outra lição é: não pôr um freio nessa capacidade dos humanos provoca tragédias, físicas e/ou morais. Essa lição, no nosso mundo veloz, globalizado e irreversivelmente multicêntrico, adquire ainda uma importância universal, aplicável a todos os antagonismos locais. Mas não há uma solução de curto prazo para o impasse atual. Aqueles que pensam só em se armar ainda não aprenderam que, por trás das duas categorias de “agressores” e “vítimas” da violência, há uma humanidade compartilhada. Nem percebem que a primeira vítima de quem exerce violência é própria humanidade. Como escreveu Asher Schechter no Haaretz, a última onda de violência na região “fez com que Israel desse mais um passo para aquele torpor emotivo que se recusa a ver qualquer sofrimento que não seja o próprio. E isso é demonstrado por uma nova e violenta retórica pública”.