Italo Calvino sobre a discriminação racial e a luta pelos direitos civis nos EUA. Por Camila Nogueira

Atualizado em 26 de fevereiro de 2017 às 14:59
Jovens manifestantes em Montgomery, Alabama
Jovens manifestantes em Montgomery, Alabama, início dos anos 1960

Os trechos abaixo foram retirados dos diários que Italo Calvino (1923 – 1985), escritor italiano nascido em Cuba, escreveu durante uma viagem que fez, no início dos anos 60, aos Estados Unidos.

Qual a importância do dia 6 de março de 1960 para o senhor?

É um dia que não esquecerei enquanto for vivo. Eu vi o racismo com meus próprios olhos, o racismo de massa, aceito como uma das regras fundamentais da sociedade. Presenciei um dos primeiros episódios de luta por parte dos negros sulistas – que terminou em uma derrota. Após décadas de completa imobilidade, os protestos por parte dos negros foram iniciados em um dos piores estados segregacionistas do país. Alguns obtiveram sucesso, sob a liderança de Martin Luther King, um ministro batista, adepto da não-violência.

De que episódio estamos falando?

A cena aconteceu no capitólio de Alabama. Os estudantes negros (da universidade negra) declararam que protestariam pacificamente naquela região contra a expulsão de nove de seus colegas, que tinham tentado se sentar na cafeteria dos brancos em Court Hall. Perto da uma hora e meia, eles se encontraram na igreja batista próxima ao capitólio. Mas este já estava repleto de policiais com cassetetes e da Polícia Rodoviária com seus chapéus de caubói, coletes azul-turquesa e calças-cáqui. As calçadas estavam cheias de brancos – em sua maioria brancos pobres, que são os maiores racistas, prontos para usar seus punhos, jovens delinquentes que atacam em grupo (sua organização, que é somente ligeiramente clandestina, chama-se Ku Klux Klan), mas também pessoas de classe média alta, famílias com crianças, todos lá para assistir e gritar obscenidades contra os negros.

Qual era a atitude da multidão?

Ela variava entre o escárnio, como se estivessem vendo macacos exigindo direitos civis – escárnio genuíno, sentido por pessoas que jamais imaginaram que os negros viriam, um dia, a reivindicar tais coisas –, e o ódio.

Nesse momento os negros ainda estavam dentro da igreja?

Sim. Quando estavam prestes a sair, a polícia bloqueou os degraus do capitólio, enquanto a multidão bloqueou todos os pavimentos. Agora furiosa, a multidão gritava “Saíam daí, negros!” Os negros desceram os degraus de sua igreja e começaram a cantar um hino; os brancos passaram a uivar e a insultá-los. A polícia e a milícia permaneceram a postos, se precisassem evitar incidentes.

Não havia nenhum branco favorável à população negra?

Havia um ministro metodista, o único homem em Montgomery corajoso o bastante para assumir uma posição. Como resultado, a Ku Klux Klan bombardeou sua casa e sua igreja um par de vezes.

Hmmm…

E então começou a pior parte. Os negros saíram da igreja pouco a pouco. Uma parte deles entrou em uma rua que não fora ocupada pelos brancos, mas outros desceram em grupos pequenos a Dexter Avenue, andando silenciosamente com as cabeças erguidas em meio a ofensas e a ameaças. A cada insulto ou dito espirituoso proferido por um branco, outros iguais a ele, homens ou mulheres, punham-se a rir, por vezes com uma insistência quase histérica, mas também por vezes de maneira afável, e essas pessoas, suponho, são as mais cruéis – esse racismo esmagador combinado com afabilidade.

Havia muitas mulheres negras?

Sim, e as jovens negras eram as mais admiráveis. Elas caminhavam em grupos contendo duas ou três, e os valentões cuspiam no chão diante de seus pés e bloqueavam o caminho seguido por elas, obrigando-as a desviar deles. Enquanto ouviam abusos e por vezes eram agredidas, as jovens negras continuavam a conversar entre si, como se nada de detestável estivesse acontecendo – ou como se estivessem acostumadas a essa cena desde o seu dia de nascimento.

O senhor chegou a conhecer Martin Luther King. O que pensou dele?

Ele é um político cuja única arma é o púlpito. A sua não-violência é a única forma de luta possível e ele a usa com a habilidade política controlada que a aspereza das condições em que ele e seus companheiros se desenvolveram ensinou-lhe. Os líderes negros – cheguei a conhecer muitos deles, de diferentes tendências – são pessoas lúcidas e determinadas, totalmente desprovidos de sentimentos de autopiedade.

Em sua viagem, o senhor conviveu tanto com militantes negros quanto com a famosa aristocracia sulista. Qual a sua opinião a respeito da última?

A aristocracia do sul dos Estados Unidos me dá a impressão de ser particularmente burra em seu esforço contínuo para resgatar as glórias da Confederação; esse patriotismo, que os leva a se dirigir a você como que convictos de que você compartilha de suas emoções, é algo mais insuportável do que ridículo. A questão racial é algo maldito: por um século, o sul dos Estados Unidos não falou nem pensou em nada além disso, só nesse problema, os progressistas e os reacionários igualmente.

Algo a acrescentar?

O que conta é o que somos, e o modo como aprofundamos a nossa relação com o mundo e com os outros, uma relação que pode envolver tanto o amor por tudo que existe quanto o desejo de que tais coisas passem por transformações.