A justiça eleitoral é um porrete burocrático sobre o livre debate democrático. Por Eugênio Aragão

Atualizado em 1 de outubro de 2017 às 12:14
Herman Benjamin

POR EUGÊNIO ARAGÃO, ex-ministro da Justiça

“O Brasil é um país estranho. Ejacular no pescoço de uma mulher não causa constrangimento, segundo seu judiciário; mas, exposição de arte que tematiza o homossexualismo ofende a paz pública, segundo um banco que retira seu apoio” (anônimo em rede social).

Leio hoje sobre palestra proferida pelo Ministro Herman Benjamin, corregedor do Tribunal Superior Eleitoral, para magistrados gaúchos, na agradável Bento Gonçalves. Disse Sua Exª., em inegável tom catastrófico, que eleições são, no Brasil, a dramática alternativa para a guerra civil e que o aprimoramento do sistema, apesar das supostas qualidades da justiça eleitoral, que seria uma das “melhores” instituições de controle de pleitos “no mundo”, seria a questão mais urgente no momento político que o país vive, para resguardar a credibilidade das eleições e a esperança da sociedade por dias melhores.

Uma bela construção retórica, mas matreiramente incompleta.

Salta aos olhos a cegueira do judiciário brasileiro para sua parcela substancial de responsabilidade pelo caos por que o Brasil passa. Em todo discurso de congraçamento de meritíssimos magistrados repete-se a lengalenga: nós somos espringuelingueabauti, mas o problema são os outros.

É como se os autofestejados juízes quisessem enfeitar seu bolinho com um daqueles guarda-chuvinhas de papel de seda que tanto faziam nossos olhos brilharem na infância, pensando em se protegerem, por debaixo dele, da chuva de excrementos que cai sobre sua instituição. Seria engraçado se não fosse trágico. No mais das vezes, só não vê quem é togado, com raríssimas exceções.

A justiça eleitoral não é essa última Coca-Cola no deserto na qual o discurso do Ministro Herman Benjamin quer que acreditemos, ou melhor, quer que os magistrados acreditem para sua salvação. Palavras do Senhor. Ela teve sua chance na década de trinta do século passado, quando foi imaginada para dar fim às correntes práticas de voto de cabresto e outras de corrompimento da vontade popular. Falhou escandalosamente. Até hoje temos uma sistema político que resguarda os interesses do caciquismo partidário, irrespectivo do clamor por mudanças sociais. E a justiça eleitoral é parte visceral dele.

Essa tutela da política pelo judiciário foi a pior invenção da elite tupiniquim. A justiça eleitoral é um porrete burocrático sobre o livre debate democrático. Tem a mania de ver chifre em cabeça de cavalo. Suas sessões se estendem por horas e horas de debate amorfo sobre filigranas do abuso disso ou daquilo. E ninguém perguntou aos contendores se as regras dessas filigranas correspondem a seu consenso sobre como a disputa deva ser, de modo a realizar justiça e equilíbrio. O tribunal baixa resoluções (muitas das quais atropelam o legislativo) depois de uma burocrática e rasteira audiência pública e as aplica a ferro e fogo. Summum ius, summa iniuria.

Criminaliza-se tudo. Inovam-se opiniões a cada pleito para adaptar a prática do tribunal à fugaz conjuntura. Faz-se tábula rasa da segurança jurídica e não se consegue disfarçar o fato inexorável de cada magistrado seguir, consciente ou inconscientemente, uma agenda política, em favor desse ou daquele contendor.

A prestação de contas da chapa de Dilma Rousseff, que esteve no vórtex do golpe judiciário-parlamentar, foi uma dessas pérolas da casuística da justiça eleitoral. O Ministro Herman Benjamin, como relator, assimilou o discurso raivoso pós-pleito de seu colega Gilmar Mendes e tratou de julgar o que as partes não tinham pedido.

As ações propostas pelo PSDB não passavam de uma revisitação das reclamações aforadas durante a campanha. Uma clara tentativa de estabelecer um terceiro turno na eleição presidencial em que o candidato desse partido foi derrotado.

Mas o Ministro Gilmar Mendes, seguindo a Sua agenda, com “s” maiúsculo mesmo, não respeitou a coisa julgado sobre a aprovação das contas e manteve-se “relator” de um processo encerrado. Promoveu uma devassa a posteriori nas verbas de campanha da chama Dilma-Temer e, para seu desgosto e tristeza da mídia rastaquera dos Antagonistas da vida, nada achou de sólido.

Quando, porém, eclodiu o escândalo midiático do chamado “Petrolão”, com suas delações premiadíssimas sem compromisso com a verdade provada, viu nelas uma fonte de destruição da legitimidade do pleito e fez introduzir, em ativa parceria com a República de Curitiba, informações nas ações do PSDB em curso, que não tinham absolutamente nada a ver com sua causa de pedir. E o Ministro Herman Benjamin fez que não viu a inadmissível inovação temática das ações.

Enquanto Gilmar Mendes trabalhava descaradamente pela cassação dos votos de Dilma, ainda Presidenta, o Ministro Herman Benjamin conseguiu se tornar celebridade na guerra política sem trégua que era movida pela oposição derrotada ao governo popular. Gilmar e Herman, ainda que por razões diversas, acabavam por trabalhar em perfeita unidade de desígnios: a invalidação da vitória de Dilma.

Deu-se, contudo, o golpe parlamentar. Tudo que antes valia não valia mais. Gilmar, um dos articuladores da aventura, não via mais sentido na cassação da chapa, já que, agora, Temer, mero vice, conseguiu, na traição, tomar o posto da titular. E Temer, como o próprio tem feito questão de tornar público, é, de longa data, amigo in pectore de Gilmar.

O Ministro Herman Benjamin preferiu, no cultivo de sua reputação e de sua imagem, manter-se firme na heresia processual. Não desviou para acudir Temer. O erro queria vencer a trapaça. Mas a trapaça venceu o erro e a chapa Dilma-Temer se salvou. Não para fazer justiça e consertar o abuso jurisdicional e, sim, para trair a democracia. Durma-se com um barulho desses!

E, depois, o Ministro Herman Benjamin ainda insiste que a nossa justiça eleitoral é a melhor coisa do mundo…

As eleições comandadas pelo judiciário não têm sido alternativa para a guerra civil. Têm sido seu combustível. Ao invés de garantir o mandato de quem ganhou, liderou o coro dos que violentavam o voto popular. Com isso, tornou-se um instrumento da polarização política.

Logo, essas eleições, com essa justiça eleitoral, não são garantia de nada, muito menos contra conflito que pode descambar em guerra civil. Não nos iludamos. Se o TSE mantiver sua performance pós-2014, o pleito de 2018, acaso tenha lugar, não será o beijo do príncipe encantado a acordar nossa bela, adormecida democracia. Será a maçã envenenada da Rainha-Bruxa, dada a Branca de Neve.

Em democracias consolidadas, política não é coisa de judiciário. Hands off! Juízes não têm legitimidade para,  como tais, se imiscuirem nas contendas partidárias. São agentes públicos que não contam com a consagração pelo voto popular. Passam por um processo de recrutamento em que se afere, apenas, sua qualidade técnica e sua integridade moral.

Isso, lá! Aqui, por vezes nem isso. Mas, de qualquer maneira, se pressupõe deles que tenham a destreza para decidir casos complexos. Tão é só. Sua legitimidade, longe de ser política, é quando muito burocrática, no sentido weberiano de burocracia, como racionalização do exercício do poder. Eles podem ser reconhecidos pela qualidade de suas decisões, não, porém, por sua popularidade ou sua representatividade.

Logo, é bom que deixemos a política aos políticos. Eleições devem por eles ser coordenadas e comandadas, num Conselho Eleitoral que os congregue todos, em todo o espectro partidário. É assim que se constroem eleições como resultado de consenso entre os contendores e, por isso, mais difíceis de serem deslegitimadas por esse ou aquele mau perdedor. E são os maus perdedores que protagonizam golpes que levam à guerras civis.