Os cartunistas do Charlie Hebdo estão levando a culpa por seu próprio massacre

Atualizado em 10 de janeiro de 2015 às 18:52

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Luciana Genro acerta quando afirma que “o fascismo islâmico só retroalimenta a xenofobia e o fascismo europeu – no fundo são duas faces da mesma moeda”. Os que cometem crimes bárbaros em nome da religião, diz ela, “o fazem pisoteando a crença de milhões de pessoas de diferentes credos”.

Mais: os corpos dos cartunistas do Charlie Hebdo ainda estão quentes e eles já estão levando a culpa pela própria morte.

O líder católico conservador americano Bill Donohue divulgou um comunicado condenando a violência — MAS (sempre tem um “mas”)  “nós não devemos tolerar o tipo de atitude que provocou essa reação violenta”.

De alguma forma, os desenhistas fizeram por merecer. Um sujeito deixou o seguinte comentário num portal. “Esse jornaleco comunista desrespeitava explicitamente as religiões, perseguia-as, afrontando-as com charges de extremo mau gosto. Uma coisa é liberdade de expressão, outra bem diferente é querer ‘causar’ para vender mais jornais, e a serviço de uma ideologia que até hoje só trouxe MERDA, e da grossa, à humanidade. Ah, vá! Esses jornalistas mereceram cada bala que receberam.”

Há quem ache que os profissionais do Charlie pagaram pela política externa da França, seu alinhamento com os EUA, as bombas no Iraque e os maus tratos à comunidade árabe no país. Eles são desumanizados para servir de argumento ao gosto do cliente.

Charlie é — sim, porque ele continuará sendo impresso — um semanário de esquerda. Sempre foi antirreligioso. Bate em católicos, no islã, no judaísmo. Em políticos e na polícia. De acordo com o falecido editor Stephane Charbonnier, o Charb, reflete “todos os componentes do pluralismo esquerdista, até de abstêmios”.

De acordo com o jornalista inglês baseado na França Hugh Schofield, são parte de uma tradição do país que remete aos pasquins que ridicularizavam Maria Antonieta. A ideia é ser ultrajante e de mau gosto.

A publicação foi fundada em 1960, como Hara-Kiri. Foi banido algumas vezes. Em 1970, o presidente francês Charles de Gaulle, velho inimigo, morreu em sua propriedade em Colombey-les-Deux-Églises. Em homenagem a ele, e também a Charlie Brown, o jornal foi rebatizado Charlie. Mau gosto? Provavelmente. No caso do jornal, já era exatamente o que se esperava.

Em Paris, três homens agindo em nome de Alá entraram na redação e fuzilaram a equipe, além de um policial na fuga. Aos olhos dos assassinos, o CH ridicularizava ícones do islamismo e tinham de ser fuzilados.

Os matadores obviamente não representam todos os muçulmanos. Mas deram uma enorme força para a islamofobia crescente na Europa. O New York Times publicou o relato de uma sobrevivente chamada Corinne Rey do atentado. Alguns trechos:

 

Era por volta das 11h30 e cerca de uma dúzia de jornalistas, incluindo os principais cartunistas do jornal, se juntou a ele [Charb] para a reunião semanal regular para discutir os artigos que apareceriam na próxima edição. O dia deles já tinha sido produtivo: menos de duas horas antes, os editores publicaram um tweet de sua mais recente charge provocadora, um desenho de Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do Estado Islâmico, desejando ao seu público um Feliz Ano-Novo e, “acima de tudo, boa saúde!”.

Sem que soubessem, uma cena de terror estava transcorrendo à sua porta –uma que chamaria a atenção do mundo e provocaria novos temores por toda a Europa a respeito de um crescente choque de civilizações, entre os radicais islâmicos e o Ocidente.

Corinne Rey, uma cartunista conhecida como Coco, tinha acabado de pegar sua filha pequena na escola e estava digitando um código de segurança para entrar no prédio quando dois homens em trajes pretos, armados com metralhadoras automáticas AK-47, a agarraram e a forçaram brutalmente a abrir a porta.

Empurrada para dentro, Coco disse que se refugiou sob uma mesa enquanto os homens entravam no saguão e seguiam para o balcão da recepção, onde um segurança que trabalhava ali há 15 anos, Frédéric Boisseau, estava sentado.

 

charlie judeus

 

Segundo uma testemunha citada na imprensa francesa, os assassinos abriram fogo, matando Boisseau e disparando tantas vezes no saguão que algumas pessoas acharam que se tratava da queda de um andaime.

Momentos depois, segundo testemunhas, os homens subiram correndo as escadas, com suas metralhadoras prontas, e seguiram para a sala de reunião.

“Onde está Charb? Onde está Charb?”, eles gritavam, usando o apelido amplamente conhecido de Charbonnier. Ao avistarem seu alvo, um homem magro de óculos, os homens miraram e atiraram.

Então, disseram as testemunhas, eles mataram os principais cartunistas do jornal que estavam sentados, paralisados. Depois massacraram quase todas as demais pessoas na sala em uma rajada de fogo.

“Durou cerca de cinco minutos”, disse Coco, abalada e com medo. “Eles falavam francês perfeitamente e alegavam ser da Al-Qaeda.”

Sigolène Vinson, uma free-lancer que decidiu vir naquela manhã para participar da reunião de pauta, achou que seria morta quando um dos homens a abordou.

Em vez disso, ela contou à imprensa francesa, o homem disse: “Eu não vou matar você, porque você é uma mulher, nós não matamos mulheres, mas você deve se converter ao Islã, ler o Alcorão e se cobrir”, ela lembrou.

“Depois”, ela acrescentou, ele partiu gritando, “Allahu akbar, Allahu akbar!” [Alá é grande, Alá é grande].

 

O tipo de sátira praticada pelo Charlie era propositadamente de mau gosto, obscena, iconoclasta. Só poderia ser publicada ali. A tragédia acabou transformando os criadores em algo que criticavam: mártires.

Depois que o prédio do Charlie Hebdo foi alvo de uma bomba em 2011, Charb disse que a culpa não era dos muçulmanos franceses, mas de “extremistas idiotas”. A frase continua atual. Ele deveria abandonar seu ofício por causa de fanáticos? Mudar de ideia?

Ninguém deveria ter o direito de se apropriar da tragédia com aqueles artistas para difundir seus próprios dogmas.

 

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