Minha briga com Jô por causa do Xangô de Baker Street. Por Paulo Nogueira

Atualizado em 16 de junho de 2015 às 6:43
Não gostou de ser criticado
Não gostou de ser criticado

Este é um capítulo de “Minha Tribo — jornalismo e jornalistas”, livro meu em fase de edição. Nele falo do jornalismo e de minhas experiências.

“TELEFONE para você, Paulo.”

Era Márcia, minha secretária na Exame. A mais confiável secretária do mundo até me levar uma quantia considerável graças a meus controles então frouxos sobre minha conta corrente. Ali aprendi uma coisa essencial com secretárias: você não pode expô-las à tentação. É um mal que você faz para elas. Dar senha de cartão de crédito, por exemplo, é um erro absurdo. Cometi esse e vários outros.

“Quem é?”, perguntei.

“Diz que é o Jô.”

Era mesmo. Era 1998. Jô tinha acabado de lançar “O Xangô de Baker Street”, um romance policial entre médio e ruim. Mas, como sempre acontece com gente que como Jô tem boas conexões na imprensa, a repercussão foi extraordinária. Todo mundo deu. Todo mundo elogiou. Jô falou do livro num Roda Viva que dá bem o tom da cobertura. Logo na apresentação, alguns depoimentos sobre Jô foram mostrados.

Lula, por exemplo, disse o seguinte: “Jô é a grande novidade da década brasileira. Tudo que eu falar é pouco diante do que ele merece”. Ziraldo emendou: “O Jô não existe!” Antônio Ermírio de Moraes tinha o que falar sobre Jô também: “A nossa maior diferença reside em ser o Jô o mais elegante e eu o menos elegante do Brasil.” Fernanda Montenegro arrematou: “O Jô é um talento múltiplo. Em nossa geração não se viu nada igual”.

Assim Jô era tratado.

Se seus talentos são múltiplos, é algo que não sei. Conheço, basicamente, o de humorista, dos tempos de programas semanais da Rede Globo. Mas como escritor Jô é abaixo da linha da mediocridade. Bem como outros romancistas bissextos brasileiros, como Chico Buarque. Nessa categoria, o melhor é o guitarrista Tony Belotto, que tem uma mão boa para romances noir.

Minha quilometragem em policiais era longa quando Jô lançou “O Xangô”. Na adolescência, meu pai me dera Agatha Christie. Li toda. Ainda hoje, admiro imensamente Agatha Christie pela engenhosidade da trama, pela criação de personagens notáveis como Hercule Poirot e Miss Marple, e pela concisão de seus livros. Quando vejo romances de 500, 600 páginas, como cada volume da Trilogia Millenium, lembro sempre da frugalidade literária de Agatha Christie.

Papai também me dava para ler, menino, os contos de mistério da coleção de Elery Queen. Depois, mergulhei nos americanos essenciais, como Raymond Chandler e Dashiell Hammett. Varri todo Rex Stout com seu detetive glutão, Nero Wolfe, e boa parte de Erle Stanley Gardner, o pai de Perry Mason. Era versado também em Ross McDonald (Lew Archer) e John D. MacDonald (Travis McGee). Em minha última fase de leitor de policiais, descobri o talento singular da inglesa PD James, que só começou a escrever depois dos 40 anos. Adam Dalgliesh, o poeta detetive de PD James, é um grande personagem.

A familiaridade com literatura me levou a ser responsável pela seção de livros da Veja aos 26 anos. Uma vez, na redação, o diretor-adjunto Elio Gaspari perguntou para mim qual era mesmo o nome do personagem de Stendhal que em “A Cartuxa de Parma” passa por Waterloo sem se dar conta do que estava acontecendo. Fabrizio Del Dongo, eu sabia. Meu prestígio diante de Gaspari aumentou naquele momento.

Bem, Jô estava muito distante de todos os escritores de alto padrão. Foi o que escrevi numa seção de assuntos pessoais da Exame. Era essa a a razão do telefonema. Eu trabalhava com a porta sempre aberta. A conversa acabou atraindo uma pequena multidão de jornalistas. O mais animado, ali, era o diretor de arte Píndaro Camarinha Sobrinho. Píndaro, um dos mais talentosos e menos pretensiosos diretores de arte com quem trabalhei, jantava de vez em quando com Jô. Conhecera-o quando era editor de arte da Veja e Jô, colunista.

Jô começou com a clássica tentativa de intimidação que pessoas como ele costumam fazer.

“Sou amigo do Roberto e do Thomaz”.

“Hmmm”.

Ele se referia a Roberto Civita, dono da Abril, e Thomaz Souto Corrêa, então diretor editorial. Eu sabia muito bem que na Abril não vigorava nenhum esquema especial de proteção contra críticas negativas de livros de amigos — reais ou alegados — de quem quer que fosse. Logo, o introito de Jô não me comoveu. Ele falava suficientemente alto para que as pessoas em minha sala acompanhassem o diálogo.

“O livro é bestseller na França”, me disse depois Jô.

“Hmmmm”.

Disse a ele que nenhum dos argumentos que ele trouxera para a queixa tinha o menor significado para mim.

Eu continuava a achar fraco “O Xangò”. Um amador em ação, em suma. A resenha que escrevi é um texto que eu gostaria de ler de novo. Não guardei. Depois de meus primeiros anos em que recortava caprichosamente tudo que escrevia e guardava numa pasta, passei ao oposto. Nunca mais guardei nada. Não gosto de ler o que escrevi porque frequentemente tenho a sensação de que poderia ter feito melhor.

Mas aquela crítica eu queria rever. Nela, eu deixei claro um fato comum na imprensa brasileira. Pessoas influentes como Jô Soares recebem, a despeito de seus méritos, um tratamento VIP. É o que o jornalista JR Guzzo gosta de chamar de “ação entre amigos”. É um sintoma de infantilidade e deslumbramento dos jornalistas.

Meu maior reparo ao livro, lembro, era seu final. Em bons romances policiais, o assassino é sempre um personagem relevante na trama. É quando o leitor diz: “Não acredito!” No Xangô, o culpado era absolutamente inexpressivo, coisa de quem não é do ramo.

Nelson Rodrigues escreveu, à sua maneira divertida e corrosiva, que certa vez procurou um amigo jornalista e pediu uma crítica favorável a uma de suas peças. “Mas sem ressalvas”, emendou. Ele queria aplausos incondicionais. Nada de “por outro lado”. Vista a obra teatral de Nelson Rodrigues meio século depois da mendicância autopromocional que ele fez, você percebe que não havia necessidade de gestos tão abjetos. Nelson Rodrigues é um gênio universal do teatro, subestimado porque seu idioma era o português e só o português. (O que não impediu a Editora Record de lançar livros do bestseller Harold Robbins em que Nelson Rodrigues aparecia na capa como tradutor.)

Não é Agatha Christie

Jô não é Nelson Rodrigues, e provavelmente sabe disso. E se NR se dava ao trabalho de pedir louvação, Jô não tinha que fazer nada para que isso acontecesse. A mentalidade nas seções de cultura da imprensa brasileira estava tomada pelo aplauso automático e em pé, aos gritos de ‘bravo!’, para celebridades como Jô Soares.

Minha resenha na Exame apenas notava isso. Gostei que a redação tivesse se juntado para ouvir a conversa. Ela tinha, para mim, um caráter pedagógico. A Exame tinha que ficar fora daquele ar viciado de compadrio em que a vítima é o leitor — e ficou.

Meus dias de Exame
Meus dias de Exame

É clássica a sentença que diz que você soubesse como é feita a salsicha não a comeria. Muitas vezes pensei, em minha carreira, que se o público soubesse como são feitas certas coisas nas redações, ficaria um tanto desapontado. Dentro de minhas possibilidades limitadas, me insurgi, desde que tive o primeiro cargo de poder efetivo, contra práticas que me provocavam engulhos, como o endeusamento literário sem razão nenhuma de pseudo-romancistas Jô Soares.