‘Mito da democracia racial praiana só serve para ofuscar as desigualdades ainda obscenas que existem no Brasil’

Atualizado em 2 de outubro de 2014 às 16:52
Copacabana
Copacabana

O jornalista e pesquisador Dawid Danilo Bartelt considera Copacabana um resumo do Rio de Janeiro, e o Rio, um resumo do Brasil. No livro Copacabana – Biographie eines Sehnsuchtortes (Copacabana – Biografia de um lugar do desejo, em tradução livre), recém-lançado na Alemanha, o autor conta as origens de uma das praias mais famosas do mundo e traça também um instantâneo de um pedaço de areia que, segundo ele, resume o estilo de vida brasileiro.

Um trecho da costa carioca onde classes e raças se misturam, seja torrando a barriga ao sol, jogando futevôlei e mesmo trabalhando pesado, na venda de mate gelado e picolé.

Diretor do escritório da Fundação Heinrich Böll no Rio de Janeiro, o alemão contesta, entretanto, a tese, muito difundida, de que na orla ocorreria, na prática, a chamada “democracia racial” brasileira. “Essa igualdade, na verdade, não existe. O fato de haver um acesso igual para todos não leva necessariamente à igualdade. As desigualdades não somem quando entramos na praia”, diz.

Bartelt argumenta que o tal mito da democracia racial praiana só serve para “ofuscar as desigualdades ainda obscenas que existem no Brasil”.

DW Brasil: O senhor escreveu um livro tanto contando o passado de Copacabana, quanto mostrando o que a praia e o bairro são hoje em dia e como vivem seus habitantes. Qual o fascínio que aquele trecho de orla exerce no imaginário alemão e europeu?

Dawid Danilo Bartelt: Copacabana, no âmbito cultural ocidental, provoca uma associação no mundo inteiro, tanto nos Estados Unidos, como na Alemanha e Europa em geral, com praia, calor, trópicos e erotismo. Cito no meu livro um guia turístico que afirma que sobre o Brasil flutua uma nuvem pesada de erotismo, calor, aventura e música. Essa é uma mistura de clichês, mas também os clichês trazem muita verdade. Isso tem muito a ver com a Copacabana que está no imaginário alemão.

Há quem diga que a praia é um lugar onde a tal democracia racial brasileira se realiza. O senhor rebate essa ideia.

Na Europa, nós conhecemos praias em que é necessário pagar para frequentar. Os brasileiros se escandalizam com isso, com essa organização classista de praia, onde praticamente só rico entra. Isso não existe nessa forma no Brasil. E os brasileiros se orgulham desse acesso generalizado à praia. Mas essa generalidade não corresponde ao princípio da igualdade, no ponto de vista social. Aliás, o acesso é igual para todos, mas nem tanto. Quando o então governador Leonel Brizola finalmente inaugurou linhas de ônibus ligando a Zona Norte às praias da Zona Sul, houve protestos.

A igualdade, de fato, não existe. As desigualdades não somem quando entramos na praia. Dizer que há uma democracia racial na praia só serve para ofuscar as desigualdades ainda obscenas que existem no Brasil. Ofusca os conflitos sociais que existem e podem ser vistos de forma clara na praia, onde muitos estão a lazer, enquanto outros trabalham.

Muitos alemães não entendem um lugar onde o arrojado biquíni fio dental é algo normal, enquanto o topless é proibido. A relação com o corpo dos frequentadores da praia também é um aspecto do seu livro?

Cada sociedade tem suas morais duplas. Um capítulo que escrevi sobre esta questão aborda a cultura do corpo e o culto ao corpo. Copacabana é um dos palcos principais disso no Brasil. Mas Copacabana também tem sido um lugar onde se inventaram vários esportes, como o frescobol, o jogo de peteca.

Um antropólogo francês disse, um dia, que na França a roupa serve para modelar e camuflar. No Brasil, o corpo é que veste a pessoa. A roupa acentua as formas corporais. Chamo esse princípio de “menos dois”: as mulheres vestem sempre roupa dois números abaixo do seu tamanho. Como nem todos conseguem manter a forma ideal, alguns acentuam ainda mais seus defeitos, mostram as barrigas de forma absurda. E isso é proposital, os homens valorizam isso, não fica uma coisa ridícula. Faz parte do jogo erótico.

Quanto ao fio dental, me lembro que quando minha cunhada brasileira, do Rio, veio me visitar em Berlim, nos anos 90, ficou escandalizada com as pessoas que faziam nudismo e quis ir embora do lugar onde estávamos. Já nós, alemães, nos escandalizamos quando vemos o fio dental. Parece que não tem calcinha.

É uma moral dupla. Com o fio dental, a mulher está nuamente vestida. No Brasil, se a mulher tem o mamilo coberto já está vestida, embora esteja nua. Mas totalmente nua, não pode. Já com o fio dental, a bunda está nua, mas a mulher não está nua, está ainda vestida. Isso é uma coisa específica do brasileiro, que temos que aceitar.

O senhor diz acreditar que o futuro de Copacabana está no morro. Como é isso?

Talvez esteja exagerando um pouco. Mas turisticamente, socialmente não há mais um potencial de mudança no asfalto. A estrutura social do bairro não vai mudar, os velhinhos continuam em seus apartamentos pequenos, a classe média baixa também. Os ricos foram embora e não vão mais voltar. O dinamismo potencial vem agora das favelas. Elas ainda não passaram a ser um lugar de cidadania efetiva – embora sejam um território especial agora, com o evento das chamadas UPPs, que já são um avanço, uma mudança.

As favelas entraram apenas agora no imaginário do bairro. Durante mais de cem anos, elas não faziam parte de Copacabana. Eram espaços brancos nos mapas oficiais do bairro. As autoridades se queixaram, por exemplo, que elas receberam atenção demais quando foram registradas pelo Googlemaps.

O texto acima foi publicado originalmente no site DW Brasil.