“Não se deixe escravizar pelo ódio”: a visita de Mujica ao Vaticano

Atualizado em 1 de junho de 2015 às 10:34
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Duas grandes salas de um hotel perto do Vaticano, lotadas. Dezenas de jornalistas e cinegrafistas, diplomatas e gente comum receberam com aplausos e gritos de “bravo, bravo”, ontem, em Roma, o ex-presidente uruguaio José Mujica, que apresentou um livro autobiográfico, La felicità al potere (A felicidade ao poder, Editora EIR). Junto com Mujica, na mesa dos convidados que participaram da apresentação, também estava presente outra famosa personalidade da cultura italiana, o escritor Roberto Saviano, que há anos vive sob a escolta policial pelas seríssimas ameaças que recebeu por causa de suas investigações e escritos sobre as máfias italianas.

Mujica, que acaba de completar 80 anos, não poupou críticas ao mundo político em geral e falou da necessidade de tomar “decisões que abarquem o mundo todo”. “Os que querem cruzar o Mediterrâneo – disse, mencionando os barcos que se afundam no mar com imigrantes – não são pobres da África, são pobres da humanidade. E o problema com a sua recepção não é da Itália, mas, sim, do mundo todo. Ninguém olha para o mundo. Lutamos pelas eleições. E, no entanto, estamos no mesmo barco porque pertencemos a esta população que está nesta barca que navega no universo”.

“Como estão equivocados os que são contra os imigrantes!”, disse, desencadeando um fortíssimo aplauso que quase não permitia ouvir o restante do discurso. “A Europa está velha. A Europa precisa comprar carros, geladeiras e televisores novos e não tem tempo para ter filhos. Ao invés de ser um problema, os imigrantes são uma solução. Não tenham medo da mistura de raças, dos imigrantes. Tenham a coragem e a inteligência de recebê-los. Vocês precisam de trabalhadores, precisam de sangue novo”. E em forma de brincadeira acrescentou: “Possuem as montanhas abandonadas… quantas ovelhas poderiam ter…”.

Mujica, que ontem foi recebido pelo papa Francisco no Vaticano para uma conversa particular, disse ter vindo a Europa em busca de suas raízes. Visitou o País Basco, no norte da Espanha e, nesta semana, a região italiana de Ligúria, de onde provém parte de sua família. Em Livorno, recebeu das mãos do prefeito a cidadania honorária e as chaves da cidade.

“Com o papa Francisco conversamos sobre a integração da América Latina”, disse brevemente para alguns jornalistas, ao concluir a apresentação do livro. Não entrou em detalhes, assim como também não o fez o Vaticano, que ontem não informou sobre o encontro, talvez porque tenha ocorrido à tarde, quando a sala de imprensa vaticana já estava encerrada.

Durante a apresentação, o político uruguaio – que estava acompanhado por sua esposa, a senadora Lucía Topolansky – foi de fato entrevistado por uma conhecida jornalista italiana da RAI, Milena Gavanelli, que dirige um programa de investigações jornalísticas sobre temas conflituosos.

“Tenho dor, mas também esperança”, disse à jornalista. “Quero lhes transmitir o entusiasmo por viver. Se pudesse voltar a viver, voltaria a lutar, mas procurando evitar os erros que cometi pelo caminho. Vivam com vontade, com alegria, riam de vocês mesmos e recomecem sempre que caírem, quando forem derrotados. Nenhum valor vale mais do que a vida. A vida é um milagre. Juntem-se aos jovens, com os jovens-jovens, não com os jovens-velhos. Brancos, negros, velhos, amarelos, jovens, homens, mulheres. A única diferença está entre os que se comprometem e os que não se comprometem”. Em especial, referindo-se aos italianos, disse-lhes: “Mantenham a alegria de viver, defendam-na… e apaixonem-se”.

“Considero Mujica heroico, que possa falar de sentimentos… Na política é muito difícil falar de sentimentos”, comentou, por sua parte, Saviano, que destacou como o ex-presidente não tem medo de falar dos problemas do Uruguai, “enquanto nós, na Itália, se falamos dos problemas, inclusive da máfia, acusam-nos de difamar o país”. Segundo Saviano, o livro do ex-presidente é “um manual de erros e de acertos”. Entretanto, tudo é dito de uma maneira que praticamente parece que está pedindo ao leitor: “ajudem-me a realizá-lo”, explicou. E citou uma frase do ex-presidente: “Todas as dependências são negativas, exceto a dependência do amor”… “Que um presidente diga isso…”, indicou Saviano.

O excepcional tema da legalização da maconha não poderia deixar de aparecer. “Não legalizamos a maconha. Não a condenamos. No Uruguai, há 150.000 consumidores. Não decidimos que a maconha é boa, nem o tabaco. Pior que a maconha é o narcotráfico. Procuramos estabelecer uma dose, um consumo regulado. Se alguém quer mais do que a dose estipulada, precisa fazer um tratamento”, explicou Mujica.

O político uruguaio, que hoje é senador, disse ter elaborado três princípios nos quais acredita firmemente.

1. Não se deixe escravizar pelo ódio.

2. A liberdade é um conflito. Ninguém tem necessidade de liberdade quando todos estão de acordo.

3. As verdades são relativas, dependem da realidade onde se vive.

E disse que não odeia aqueles que o obrigaram a passar 14 anos na prisão, de 8 a 9 deles sem livros. “Tive que lutar para não ficar louco, mas esses anos foram os que mais me ensinaram”.

E respondendo as críticas daqueles que o acusam de ter sido muito brando com os expoentes da ditadura que prendeu, torturou e matou dezenas de pessoas, acrescentou: “No Uruguai me reprovam. Lutei com a Justiça pelo que ocorreu. Porém, não posso sentir ódio pelos que me aprisionaram. E dado que sou um lutador político, aqueles que me puseram na prisão possuem filhos e netos e, se me enfrento pelo ódio com os pais, perco a possibilidade de resgatar seus filhos e seus netos”.

Como se sentiu sendo presidente? E nas reuniões internacionais?, foram lhe perguntado.

“Não me encaixo no modelo de presidente. Eu sou direto. Digo o que penso. Às vezes, digo coisas muito duras. Na alta política, as coisas que se dizem não devem ser grosseiras, mas, sim, penetrantes. Às vezes, acredito que me convidavam para as reuniões internacionais como um vaso raro, que adorna porque é diferente. Em certos momentos, nessas reuniões se percebe um ambiente quase feudal. Eu não acredito que se estamos em uma democracia, seja necessário viver como a maioria, não como a minoria”.