No Brasil do absurdo, o linchamento pós-morte de Maria Eduarda é normal. Por Nathalí Macedo

Atualizado em 4 de abril de 2017 às 11:32
Maria Eduarda
Maria Eduarda

 

O Brasil está cansado de se indignar. São tantos os absurdos em série – do Governo, da polícia, da bancada evangélica, dos conservadores, à esquerda e à direita – que parece que já não se tem muito a dizer.

A velha mania brasileira de culpar quem já nasceu culpado, entretanto, permanece: quantos desaprenderam a bater em que já apanha costumeiramente?

Empenha-se tanta criatividade neste ofício que já é possível, num país como o Brasil, chegar-se ao absurdo de culpar crianças mortas por seguranças ou policiais (aparentemente, perdemos o senso de absurdo).

Estamos tão imersos nesse escapismo à indignação idiotizada que há um vídeo de um garoto sendo arrastado e abandonado por seguranças do Habbibs e, ainda assim, argumentou-se: “Ele morreu de overdose, ele estava incomodando os clientes, ele quebrou um carro” (nota: um carro é apenas um carro).

Há tanta insensibilidade que é possível dizer, por exemplo, e sem grande constrangimento, que Maria Eduarda, a menina morta por policiais em Acari, no Rio de Janeiro, na verdade não foi morta por policiais.

Tem-se até um laudo – cuja autenticidade foi negada pela própria Polícia Federal – afirmando que os projéteis que mataram a garota (dois, na altura do crânio, pelas costas) não partiram de armas da polícia.

Duvido.

Mas ainda pior do que tentar inocentar uma polícia assassina com um laudo inexistente é tentar culpabilizar a vítima com uma foto falsa: a foto de uma menina negra segurando um fuzil, que circulou no Whatssapp nos últimos dias, não é de Maria Eduarda, disse a família – a família, que sequer pode chorar em paz a própria dor, porque precisa se ocupar manter limpa a memória de uma menina de treze anos morta dentro da escola. (Leia em voz alta e convença-se do quanto isso é surreal).

O linchamento pós-morte de Maria Eduarda é o mesmo linchamento pós-morte de Maíra Panas, morta no avião do Ministro Teori Zavascki e, depois disso, apontada como prostituta.

Trata-se do mesmíssimo linchamento contra a vítima de estupro coletivo em 2016: estuprada por trinta e três homens, filmada, humilhada na comunidade e na delegacia, e tudo o que realmente importava era se ela segurava armas ou não – na ocasião, circulou também uma foto de uma garota posando com armas, que foi equivocadamente atribuída à vítima.

A lógica é muito simples: Se você mora na favela, você é culpado (se  você mora na favela e é uma mulher, você é culpada em qualquer circunstância).

O linchamento de Maria Eduarda, aliás – surpreendentemente, ou não – não se deu apenas na grande mídia. A mídia fascista, parece, tem muitos filhos, e que aprenderam tão bem a colocarem a culpa nas vítimas que nem mesmo a morte os intimida.

Em dias como hoje, é impossível não reafirmar o óbvio: estamos falando de uma criança de treze anos. Estamos falando de um país em que policiais matam crianças de treze anos dentro de escolas – e não há nada que, moralmente, justifique isso.

A questão, na verdade, não é saber se a menina segurava fuzis ou não. Crianças que seguram fuzis não merecem morrer. O que importa dizer é que Maria Eduarda não é a primeira e não será a última.

Todos os dias, na minha timeline, uma colega de ofício – escritora e militante – posta sobre os acontecimentos sangrentos em Acari. Foi ela quem me mostrou a estatística mais triste do dia: a cada 60 horas, um ser humano é morto pelos policiais do 41º BPM, o batalhão responsável pela “pacificação” de Acari (a informação é do Jornal Extra).

Em 88% dos homicídios, a cena do crime foi destruída – não deu em nada, enfim.

Onde o filho chora e a mãe não vê, todo dia tem criança morta. Todo dia tem polícia com o pé na porta de cidadãos de bem (mas que, por serem pobres e favelados, não se enquadram no conceito de “cidadãos de bem” para a maioria das pessoas).

Todo dia, diria ela, a favela sangra.

Mas quando um caso escandalosamente óbvio de violência genocida é publicizado, surgem os defensores da polícia, munidos de falsos laudos, falsas fotos ou qualquer coisa, autêntica ou não, que seja necessária para continuarmos fingindo que não temos a polícia que mais mata no mundo.

Qualquer coisa serve: o importante é que continuemos acreditando, estupidamente, que o inferno não é aqui.