Nos 100 anos de uma derrota traumática, a Alemanha esqueceu a Primeira Guerra Mundial?

Atualizado em 31 de outubro de 2014 às 11:04

41 - 01 - Primeira Guerra Mundial

 

Publicado originalmente na DW.

 

“I am connected because…” No website do Museu Imperial da Guerra de Londres, Dan e Elana, Emily e Hugh e cidadãos britânicos de todas as idades contam sobre sua ligação com a Primeira Guerra Mundial. Ora o avô que teve de arrastar os corpos do campo de batalha e enterrá-los logo em seu primeiro dia no front. Ora o bisavô, médico militar, baleado pelas costas. Ou a mãe que perdeu o noivo nas batalhas.

Num vídeo com o objetivo de arrecadar fundos para uma grande exposição sobre o tema a partir de julho, filhos, netos e bisnetos descrevem os horrores da Primeira Guerra Mundial, aqui profundamente enraizados nas memórias familiares. Para os alemães, ao contrário, é muito difícil estabelecer essa relação, já que no país outra pergunta está em primeiro plano: “O vovô era nazista?”

Agressor, vítima, participante?

Na Alemanha, filhos e netos querem saber qual o grau de envolvimento de seus pais e avós com o nacional-socialismo. Se estes foram vilões, vítimas ou parte da massa inconsciente. Desconhecer as próprias raízes pode desestruturar fortemente um indivíduo, como mostra a história de Jennifer Teege.

A vida da filha de uma alemã e um nigeriano foi revirada por completo quando ela soube, por acaso, que seu avô era Amon Göth, o sádico comandante de um campo de concentração na Polônia, que ficou conhecido através do filme A lista de Schindler.

Mas que relação tem a história de Jennifer Teege com a Primeira Guerra? Ela mostra por que o conflito de 1914 a 1918 caiu para segundo plano na memória coletiva. Ele ficou à sombra de horrores subsequentes ainda maiores, como o nazismo, a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto e a Guerra Fria. Todos iniciados na Alemanha.

História da Alemanha cheia de rupturas

Ao contrário de Inglaterra e França, cujos sistemas políticos (democráticos) permaneceram basicamente estáveis no século 20, a história alemã é cheia de rupturas. Desde 1914 houve cinco sistemas totalmente diversos: o Império Alemão, a República de Weimar e a ditadura nazista; depois a divisão em Alemanha Ocidental (RFA) e Oriental (RDA): dois Estados irmãos em confronto, pois integravam blocos inimigos. A Alemanha reunificada existe há apenas 25 anos. É uma jovem democracia, em comparação com França e Inglaterra.

Nenhum outro país da Europa Ocidental passou por mudanças tão drásticas. Porém o mesmo não pode se dizer de muitos países vizinhos ao leste da Alemanha, como a Polônia, Rússia e os países dos Bálcãs. Numa entrevista à DW, o cientista político Herfried Münkler explicou que por isso existe na Europa “uma disparidade Leste-Oeste, no que toca à cultura da memória”.

Além disso, ao contrário dos belgas ou franceses, os alemães não testemunharam a Primeira Guerra dentro do próprio país. Na época do Império Alemão, grande parte da população só tomava conhecimento do conflito através de sucintos obituários e dos cartões postais censurados que os soldados enviavam.

O terror dos bombardeios e das evacuações de 1939 a 1945 suplantou a lembrança das trincheiras e campos de batalha da Primeira Guerra Mundial.

Berlim no fim da Grande Guerra
Berlim no fim da Grande Guerra

Causa versus culpa

Mesmo assim, também existem em vários lugares na Alemanha memoriais e associações de veteranos que recordam os mortos da Primeira Guerra. Há mais de meio século, pesquisadores alemães ocupam-se intensamente em elaborar a memória desse acontecimento.

Foi o historiador alemão Fritz Fischer quem lançou, na década de 60, a tese de que os alemães foram os responsáveis pela eclosão da Primeira Guerra Mundial. Assim, ele desencadeou um longo debate internacional, conhecido como a Controvérsia de Fischer.

Abrindo o ano do centenário do conflito, foram lançadas inúmeras novas publicações. A questão da culpa ganhou agora um caráter secundário, pois é praticamente impossível responder a pergunta, devido à grande variedade de fontes e perspectivas. Em vez disso, o foco central é a investigação das causas.

Em The sleepwalkers: How Europe went to war in 1914 (Os sonâmbulos: Como a Europa foi à guerra em 1914), o historiador australiano Christopher Clark analisa o conflito como “o resultado evitável de uma densa sequência de eventos e decisões”.

Em outro livro, Der Grosse Krieg: Die Welt 1914-1918 (A Grande Guerra – O mundo em 1914-1918), Herfried Münkler descreve detalhadamente o panorama dos anos de 1914 a 1918. O autor aponta o que os políticos de hoje podem aprender com a história, como, por exemplo, impedir que conflitos regionais se alastrem pelo continente inteiro.

Jovens querem saber mais

Com a aproximação do jubileu, o interesse público aumentou. Uma pesquisa recente revelou que os jovens da Alemanha querem saber sobre a Primeira Guerra Mundial mais do que aquilo que aprendem na escola. Diversos eventos procuram iluminar as múltiplas facetas da guerra.

A exposição Die Avantgarden im Kampf (As vanguardas em combate), do museu Bundeskunsthalle em Bonn, apresenta informações através de jornais, revistas e páginas online. No entanto, as iniciativas mais emocionantes ultrapassam as perspectivas nacionais.

O website Europeana 1914-1918, por exemplo, é uma plataforma em 11 idiomas que coleta documentos e recordações particulares de toda a Europa. Também se destaca o projeto European Film Gateway, que desde 2012 disponibiliza na internet filmes históricos relacionados com a Primeira Guerra, provenientes de vários arquivos europeus.

Uma coisa, porém, chama a atenção: no tocante às grandes cerimônias nacionais em memória da guerra iniciada há 100 anos, a Alemanha oficial tem agido com reserva. No país, a Primeira Guerra não serve à formação de mitos nacionais e muito menos para ser comemorada.

São as inúmeras publicações e projetos que ajudam a compor um panorama internacional da Primeira Guerra Mundial, a partir do quebra-cabeça das diferentes perspectivas nacionais.

Assim como os astronautas só conseguem ver a Terra como um todo quando se afastam o suficiente, os historiadores também precisam de suficiente distância para reconhecer com clareza as reciprocidades e correlações em jogo.