O espião que foi até o fim: a fascinante história de Kim Philby

Atualizado em 18 de março de 2015 às 15:42
Kim Philby
Kim Philby

Todos os homens são iguais. Isto é, todos os homens que possuem um guarda-chuva.

E.M. Forster

O lado negro da natureza humana, repleto de intrigas, segredos e mistérios, é fascinante. “Dizem que todo mundo ama o amor”, diz Agatha Christie em um de seus livros, “Mas é claro que dizer isso é um pouco equivocado. Troque amor por mistério e aí sim terá uma verdade incontestável. Todo mundo ama um bom mistério”.

Histórias que envolvem assassinatos, mistérios, traições e romances providenciam-nos a chance de nos relacionarmos intimamente com o lado mais perigoso da vida, conhecendo e compreendendo os segredos, os ideais, as motivações e as lutas de diversos personagens – sendo eles históricos ou fictícios –, que provocam nos leitores/espectadores as mais diversas emoções: interesse, simpatia, curiosidade, animosidade, desaprovação, identificação e assim por diante.

É natural que as histórias de espionagem se adequem à regra, especialmente as que envolvem algum tipo de traição. O que leva uma pessoa a trair sua própria pátria, nos perguntamos. Ambição, certamente – mas o que traidores ambicionam? Dinheiro, status, poder, notoriedade ou a elaboração de um mundo regido de acordo com suas concepções e convicções? A lógica da escritora P.D. James de que o propósito de qualquer crime se inicia, na língua inglesa, com a letra L, pode ser aplicada: love [amor], loathing [ódio], lust [luxúria] e lucre [lucro].

Tais motivações, algumas mais e outras menos, se adequam muito bem a um célebre episódio da história inglesa, que foi muito bem retratado na série Cambridge Spies [Os Espiões de Cambridge] e na própria autobiografia de Kim Philby, My Silent War [Minha Guerra Silenciosa].

Dirigida por Tim Fywell [Affinity, The Woman in White] e roteirizada por Peter Moffat [North Square, The Village], Cambridge Spies possui quatro episódios de quarenta minutos cada e foi ao ar em maio de 2003. Ambientada na Europa entre os anos 1934 e 1951, a série apresenta a atmosfera, pré e durante a Guerra Fria, tendo como foco principal as vidas dos quatro espiões de Cambridge.

Harold Adrian Russell Philby, Donald Duart Maclean, Anthony Frederick Blunt e Guy Francis de Moncy Burgess (interpretados por Toby Stephens, Rupert Penry-Jones, Tom Hollander e Samuel West) são apresentados, logo no primeiro episódio, como “os mais notórios agentes duplos da história da espionagem”. E provavelmente o são, pois no ápice da importância e poder da rede de espionagem de Cambridge, os quatro agentes soviéticos se encontravam infiltrados no MI5, no MI6, no Ministério de Relações Exteriores e no Ministério da Guerra da Grã-Bretanha, desfrutando de posições prestigiosas e de grande importância em tais departamentos. Durante suas carreiras, entregaram alguns dos segredos mais preciosos e confidenciais da Grã-Bretanha para a União Soviética.

Anthony Blunt, outro dos espiões de Cambridge, possuia uma relação de amizade com a Rainha Elizabeth II.
Anthony Blunt, outro dos espiões de Cambridge, possuia uma relação de amizade com a Rainha Elizabeth II.

Kim Philby, o espião que foi até o fim

“Philby cometeu traição contra sua própria pátria, é verdade; mas quem, entre nós, nunca traiu algo muito mais importante do que um país?”

Graham Greene

Kim Philby é o mais famoso dos espiões de Cambridge. Sua figura contraditória serviu de inspiração para inúmeros personagens que encantaram e continuarão encantando leitores ávidos por romances de espionagem. Dois dos maiores romancistas da Guerra Fria, os britânicos Graham Greene e John Le Carré, inspiraram-se em sua imagem para criar Harry Lime e Bill Haydon, os traidores/vilões/antiheróis de O Terceiro Homem e O Espião que Sabia Demais.

Em 1934, ano em que a série se inicia, Philby estava prestes a se formar em Cambridge. Retratado como um rapaz entusiasmado e bem-intencionado, profundamente idealista, no decorrer da narrativa Philby vai se tornando manipulador e inescrupuloso. Em certo momento, afirma que o amor o levou a trair seu país. Ele não se referia, naturalmente, ao amor romântico – e sim ao amor que dedicava a certos princípios, tais como a igualdade e o fim do Fascismo. Em uma conversa com Guy Burgess, confessa temer que o Fascismo se alastre pelo mundo, especialmente na Inglaterra. Burgess concorda, e completa fervorosamente:

“Crianças estão morrendo em nosso país porque não são devidamente alimentadas, velhos morrem abandonados… Por quê? Porque são pobres. Apenas isso, meu caro, por serem pobres… Eu odeio isso, com todo o meu coração, e faria qualquer coisa para reverter essa situação. Sentimentos pessoais, pequenas humilhações – tudo isso deve ser deixado de lado. É difícil, é muito difícil. Mas é assim que deve ser. E eu sei que você sente o mesmo”.

Na série, Philby é tratado com simpatia; isto é, apesar de vaidoso e manipulador, somos levados a crer que princípios nobres o guiavam. Essa não era a opinião de John Le Carré; de acordo com ele, o espião sentia-se atraído pela ideia de fazer todo mundo de tolo, sendo “desprovido de uma pátria, de uma mulher ou de qualquer espécie de fé”. Ainda nas palavras de Le Carré, Philby possuía, por trás de sua “arrogância elitista” e de sua “obsessão violenta por aventuras”, uma “vaidade violenta e desajustada que o conduziu a julgar que nada no mundo era digno de sua lealdade”. Em última instância, analisou o escritor, “Philby deixou-se conduzir pelo vício da ilusão e da enganação”.

Ao contrário de outros agentes, Philby não foi recrutado pelos russos enquanto prestava serviços no MI6. Ao contrário, era agente da KGB desde seus dias em Cambridge. Algum tempo depois de se formar, foi enviado para a Áustria e se hospedou na casa de uma família esquerdista que acolhia judeus foragidos e simpatizantes do Comunismo. Philby se apaixonou pela filha da família, a jovem Litzi Friedmann: “Ela era extremamente sincera e ia direto ao ponto. Na tarde em que nos conhecemos, perguntou-me quanto dinheiro eu havia levado. Respondi que cerca de cem libras, e que esperava que essa soma fosse o suficiente para passar o ano em Viena. Ela fez alguns cálculos e anunciou, sem sombra de timidez ou constrangimento, que sobrariam cerca de vinte e cinco libras. ‘O senhor pode ser doar para a Organização Internacional de Auxílio aos Revolucionários’, sugeriu ela. Passei a admirá-la profundamente por sua determinação”, recordou ele, anos mais tarde.

Em Cambridge Spies, Kim Philby (Toby Stephens) explica a um colega: “É uma escolha inevitável: Comunismo ou Fascismo. Tudo que existe no meio adormeceu. Para combater o Fascismo, é necessário se tornar comunista”. A ascensão do Nazismo na Alemanha fez com quem Philby decidisse que era hora de agir. Foi nesse momento que enfrentou a decisão mais importante de sua vida: embora sua intenção inicial fosse ingressar no Partido Comunista da Grã-Bretanha, Burgess e seus contatos russos o convenceram de que poderia ser muito mais útil à causa caso trabalhasse no Serviço Secreto do Reino Unido ou em algum órgão governamental, apoiando-os por trás do pano.

Sua inteligência lhe propiciou diversos êxitos e, tendo iniciado sua carreira no MI6 em 1940, quatro anos mais tarde foi promovido a chefe da seção anti-soviética. Desse modo, o homem que controlava as operações inglesas contra os russos estava, na verdade, trabalhando para os russos. Não é de se espantar que tantos agentes ocidentais tenham desaparecido por trás da temida Cortina de Ferro e jamais tenham sido vistos novamente.

Quando Donald Maclean caiu em suspeita, Guy Burgess foi incumbido com a missão de ajudá-lo a partir para Moscou. Em vez disso, Burgess foi embora com ele e essa fuga atraiu a atenção do público. O fato de Burgess ter desaparecido o identificou como um cúmplice da espionagem de Maclean e a posição de Philby foi altamente comprometida. Em julho de 1951, Philby resignou do MI6. Em uma conferência de imprensa em novembro de 1955, afirmou ser inocente, declarando que “jamais havia sido um comunista”.

Em 1965, Kim Philby partiu para o Oriente Médio como correspondente para o The Economist e o The Observer. Após a morte de sua esposa, casou-se com a americana Eleanor Brewer e passou a viver em Beirute. De acordo com Eleanor, o marido tornou-se alcóolatra e, a partir de 1962, passou a sofrer de colapsos nervosos. Nesse meio tempo, Dick White, chefe do MI6, suspeitava que Philby fosse o “terceiro homem” (Maclean e Burgess, respectivamente, eram o primeiro e o segundo”. O agente Nicholas Elliott foi incumbido de conseguir sua confissão, e o encontrou completamente bêbado: “Eu já o admirei muito, Kim – mas, Deus, como eu o desprezo agora”, afirmou friamente. De acordo com Elliott, Philby admitiu ser um agente duplo; mas recusou-se a assinar qualquer tipo de declaração. Pediu que a interrogação fosse adiada e, em julho de 1963, sua chegada em Moscou foi confirmada.

A vida em Moscou foi muito mais difícil do que o espião esperava. Os russos temiam que ele fosse, na verdade, um espião triplo; de modo que foi colocado praticamente sob prisão domiciliar e passou a ser vigiado pela KGB. Foi nessa época que Philby começou a escrever sua autobiografia. A russa Rufina Pukhova, com quem havia se casado em 1971, declarou que o marido passara a sofrer de depressão profunda, mas que jamais se arrependera de ter partido para a União Soviética. Em 1988, Kim Philby faleceu. Além de ter recebido um funeral grandioso e várias medalhas, foi agraciado com o título póstumo de “Herói da União Soviética”.

Afinal das contas, quem foi Kim Philby? Seu biógrafo Philip Knightley relatou que, mesmo depois de ter passado vinte anos estudando esse homem, não seria capaz de responder essa pergunta. O verdadeiro Philby se aproximaria mais do julgamento de Graham Greene ou do de Le Carré? Talvez tenha sido uma fusão de ambos, com várias outras características no meio.

As opiniões em relação aos espiões de Cambridge são divergentes – o que é perfeitamente natural. Afinal das contas, assim como as pessoas são diferentes, suas avaliações e visões acerca de determinada questão ou evento tendem a se distanciar. Um escritor (talvez Le Carré, não tenho certeza) afirmou que as condições implacáveis da Guerra Fria não permitiam que os agentes – ocidentais ou soviéticos – fossem puros, e que a questão era o quão dispostos estavam a sujar suas mãos enquanto tentavam atingir seus objetivos.

Philby, em última instância, agiu de acordo com aquilo em que acreditava. Não é surpreendente que tenha adotado o Comunismo no início dos anos 30, porque muitos de seus contemporâneos fizeram a mesma escolha. Grande parte daqueles que optaram por tal ideologia a abandonaram (compreensivelmente, é claro) quando o lado cruel de Stálin tornou-se aparente, mas Philby foi até o fim: “Eles se desencantaram com os ideais comunistas, mas eu segui em frente”, relata em My Silent War. Dissimulado, enganador, ilusório, ardiloso – sim, provavelmente. Mas, conforme apontou Graham Greene, “Kim Philby serviu uma causa, e não a si mesmo”. Tendo tudo isso em mente, é impossível não admirar (ainda que secretamente) o entusiasmo, a determinação e a coragem do homem que contraiu um compromisso ideológico aos vinte e um anos e se manteve fiel a ele até o final de sua vida.