O futuro provavelmente verá Manning como um heroi

Atualizado em 22 de agosto de 2013 às 17:26

A história muitas vezes faz julgamentos melhores que os tribunais.

Manning não se conformou com os crimes de guerra de seu país
Manning não se conformou com os crimes de guerra de seu país

O caso de Bradley Manning, condenado hoje a 35 anos de prisão por ter vazado documentos para o Wikileaks, transcende as leis penais para se situar na definição ética do que é lealdade e do que é traição.

O que separa o herói do traidor?

Borges tem um conto interessante sobre o tema, com hipotética situação na Irlanda do século 19, que Bertolucci aproveitou, atualizando-o para os tempos de Mussolini, com o filme “A estratégia da aranha”.

O escritor não toma partido, e deixa a dúvida sobre se Fergus Kilpatrick fora herói ou traidor, mas deixa entender que na face do herói podem estar as marcas do traidor – ou o contrário.

Será traidor aquele que se orienta por sua consciência, e considera necessário sacrificar os planos de ação, a fim de evitar o sacrifício inútil de vidas? Como estabelecer essa diferença dramática entre o traidor e o herói?

Tomemos dois casos conhecidos, o de Calabar, que ficou ao lado dos holandeses, e o de Tiradentes.

Os defensores da memória de Calabar afirmam que, para o Brasil, melhor teria sido a colonização holandesa. A história lhes retira a razão: se os holandeses houvessem expandido sua presença a todo o país, o nosso destino teria sido, provavelmente, o da Indonésia. E outros seriam os habitantes de nosso país, não exatamente nós mesmos.

Tiradentes era suboficial da Cavalaria da Tropa Paga das Minas. Servia, assim, às forças armadas da Coroa Portuguesa. Para os julgadores de seu tempo, ele traíra a Rainha de Portugal e os seus companheiros de farda, ao participar da Conjuração que tinha como objetivo final a independência das Minas e do Brasil, e, como objetivo imediato, a prisão e a possível execução do governador da Capitania, o Visconde de Barbacena.

Poucos foram os habitantes da Capitania que, naquele momento, o viram como herói. Além dos intelectuais, sacerdotes e comerciantes que participaram da Conspiração, só homens do povo lamentaram, no momento dos fatos, sua prisão e sua morte.

O reconhecimento público do heroísmo de Tiradentes e de sua profunda razão ética na busca da independência, como realização da solidariedade nacional, só viria muitos anos depois.

No raciocínio dos partidários de Portugal, o herói fora Joaquim Silvério dos Reis, que mantivera (pouco importa conhecer as suas razões) fidelidade à Rainha, em carta manuscrita de denúncia da conspiração, enviada ao Governador da Capitania.

Uma visão pragmática da História mostra que os heróis estão sempre no campo vitorioso, ainda que a vitória, como a liberdade que Tiradentes pretendia, tardasse no tempo.

Os americanos têm um traidor exemplar, na figura de Benedict Arnold, que desertou as tropas revolucionárias, passando ao inimigo britânico.

Os norte-americanos não conseguiram prendê-lo e enforcá-lo, mas os próprios britânicos, passada a sua utilidade, deixaram-no morrer quase à míngua em Londres.

É certo que, se os britânicos houvessem sido vitoriosos, o busto de Arnold estaria em algum lugar de Londres, como se encontram as estátuas de Nelson e Wellington.

Bradley traiu quem? O governo belicista dos Estados Unidos, servidor do famoso Complexo Industrial-Militar, denunciado pelo presidente Eisenhower, herói da 2ª Guerra Mundial, ou a nação americana que, em tese, o julgará?

Traiu os seus companheiros de farda, ou um sistema de poder mundial responsável pela morte de centenas de milhares de pessoas inocentes, nos países mais pobres do mundo, mediante as guerras de conquista, os golpes de Estado, como os que sofremos na América Latina?

Quem trai, trai sempre em troca de algum benefício. Bradley não agiu em benefício de si mesmo, desde que não recebeu qualquer compensação pelos seus atos, nem se pode dizer que tenha passado as informações de que dispunha, diretamente para os “inimigos” escolhidos pelo governo de seu país.

Um juízo rápido, provavelmente superficial, mas indicado pelas informações disponíveis, pode identificar Bradley como um jovem inquieto, preocupado com as crueldades da guerra de que participava, com a segurança real e a felicidade de seu povo.

Em favor da nação – essa é a idéia que se impõe no exame de seu caso – ele se colocou contra o Pentágono e contra a diplomacia cínica, hipócrita e prepotente de seu governo.

Ele foi condenado a 35 anos de prisão, mas provavelmente um dia seus atos serão vistos como heroicos.