O livro que conta por que o Haiti é a 'República do Pesadelo'

Atualizado em 17 de janeiro de 2010 às 14:31
Praias lindas, mas uma miséria enraizada e tenebrosa
Praias lindas, mas uma miséria enraizada e tenebrosa na República do Pesadelo

A SEGUNDA MELHOR maneira de conhecer o Haiti é ler Os Comediantes, de Graham Greene. A primeira, evidentemente, é ir para lá, como fizeram jornalistas do mundo todo depois do terremoto de quinta-feira que pode ter matado 200 000 pessoas e é um candidato forte ao título de pior desastre natural da história da humanidade. Nada define tanto a magnitude da destruição quanto as imagens tremulantes e tenebrosas de uma câmara segurada por uma amadora da qual escapam palavras que resumem a história: “O mundo está acabando“.

haitiGreene, em Os Comediantes, leva você pelas mãos ao Haiti, a terra do vudu e da miséria consistente, dos ditadores que se derrubavam uns aos outros, das ruas de terra sobre as quais cadáveres apodrecem sob a vista anestesiada da sociedade cheia de pobres e analfabetos e à míngua de pessoas capazes de dar um rumo a um país ao longo do tempo amplamente ignorado e desprezado exceto por um lapso em que foi explorado no limite pelos colonizadores franceses. Greene lança um olhar duplo, repleto  de compaixão e afeto ao país e tomado de ódio pelos ditadores haitianos, representados no homem que simboliza melhor todos eles, François Duvalier, o Papa Doc. De 1957 a 1971, com o auxílio avassalador de sua polícia seceta, os Tonton Macoutes, sempre escondidos em óculos escuros, Papa Doc promoveu o horror indiscriminado no Haiti. Médico de formação, adepto fervoroso do vudu, ele conseguiu levar a população a acreditar que seu filho, Baby Doc, era sua continuação na vida terrena, e os haitianos enfrentariam com o rebento mais 15 anos massacrantes. Papa Doc ascendeu ao poder traindo pessoas e tramando nos bastidores, amparado num perfil baixo parecido com o que Stálin utilizou para derrotar Trotsky e depois outras eminências bolcheviques na luta pelo poder pós-Lênin.

Em Os Comediantes, de 1966, que no Brasil também tem o título de Os Farsantes, aliás mais adequado, o personagem central é Brown, que tem muito de Greene, a começar por um romance com uma mulher casada. Brown é um inglês dono de um hotel que, desde a chegada de Papa Doc ao poder, viu os turistas sumirem, assustados com a truculência do novo regime. Aconteceu isso com o próprio Greene. Ele visitara duas vezes o Haiti como turista nos anos 50, pré-Chevalier, e vira um país alegre embora pobre. Papa Doc acentuou a pobreza e obliterou a alegria. Brown decide vender o hotel, e a história começa quando ele está voltando, de navio, de uma viagem a Nova York na qual tentara encontrar um comprador. Ao desembarcar em Porto Príncipe, ele e as pessoas que conhecera no navio são cercadas de mendigos, muitos deles rastejantes. Eis o Haiti de Papa Doc, eis o Haiti de sempre, uma ilha caribenha de 10 milhões de habitantes em que a principal atividade é o tráfico de drogas e na qual não há mão de obra qualificada que segure atividades que não sejam básicas. São duas as línguas, o francês dos colonizadores e o crioulo local, uma mistura do próprio francês com diversos idiomas de origem africana.

Papa Doc com o chapéu no peito: os turistas fugiram de sua violência
Papa Doc com o chapéu no peito: até os turistas fugiram de sua violência, que ceifou milhares de vidas

SOBRE A MENTE tumultuada de Papa Doc, basta dizer que ele achava ter desempenhado um papel importante, com o vudu, na morte do presidente americano John Kennedy. Poucos meses depois de seu assassinato, um emissário de Papa Doc foi secretamente ao túmulo de Kennedy e fez um serviço — colheu ar numa garrafa, por exemplo — para que a política americana fosse mais generosa em relação a seu regime. Papa Doc perseguiu e matou rivais reais e imaginários. Alguns cálculos falam em 30 000 mortos. Ao assumir o poder, ele disse: “Não tenho nenhum inimigo, a não ser os inimigos do Haiti.” Ele estava se dando licença para matar. Essas foram as bases do que Greene, num artigo para um jornal britânico escrito antes da publicação de Os Farsantes, chamou de República do Pesadelo. Papa Doc morreu aos 64 anos, vítima do coração debilitado por uma diabete forte, e foram tantas suas atrocidades que ganhou o apelido de Calígula Negro.

O hotel de Brown chama-se Trianon, e na verdade é o nome de fantasia para o Hotel Oloffson, que no passado foi um reduto para milionários estrangeiros em busca do sol e das mulheres do Haiti. Decadente, o hotel ainda vive, e foi de lá que surgiu um dos mais buscados focos de acesso a informações locais pelo twitter imediatamente após o terremoto. O dono do hotel e tuitador, Richard Morse, é um remanescente da era de Papa Doc e tem lembranças vívidas de Graham Greene, um homem reservado, observador, calado, “sempre acompanhado de mulheres bonitas”. Morse é também fotógrafo. “Ser fotógrafo é para loucos, mas ser dono de hotel é o símbolo maior da insanidade”, disse ele certa vez.  Morse, no twitter, informou que cerca de 2 milhões de pessoas vivem em Porto Príncipe, onde há escassez de água e comida e cadáveres se empilham nas ruas porque as morgues estão cheias. Ele se permitiu um desabafo esperançoso: “Nos últimos anos, ninguém votou em eleições no Haiti. NINGUÉM. Depois eles inventaram um votos de ocasião. Será que vamos virar a página?”

O hotel que foi a base de Os Comediantes e agora é um dos focos de notícias pelo twitter
O hotel que foi a base de Os Comediantes e agora é um dos focos de notícias pelo twitter

Brown, como um típico personagem de Greene, simpatiza com os derrotados, com os oprimidos; no caso, os adversários de Papa Doc. Corre riscos ao protegê-los e escondê-los em seu hotel. Quando Os Farsantes foi publicado, em 1963, Papa Doc ficou furioso. Escreveu um texto tentando desqualificá-lo e, britanicamente, Greene disse que era uma honra ter sido resenhado, pela primeira vez na carreira, por um chefe de Estado. Mas por um bom tempo carregou o medo de que a mão longa de Papa Doc o alcançasse onde quer que estivesse, mediante um assassino contratado ou coisa parecida.  “O pobre Haiti e o caráter de Papa Doc não foram inventados”, avisou Greene na dedicatória a uma pessoa, quando Os comediantes foi lançado. Um amigo disse, posteriormente, que Greene procurou o inferno a vida toda e foi achá-lo no Haiti.

Em 1967, surgiu do romance um filme, em que o casal mais notável do cinema da época, Liz Taylor e Richard Burton, faz o par romântico. O roteirista foi o próprio Greene. Com seu talento único e sua defesa épica dos perdedores pelas palavras, Greene despertou um debate intenso mas efêmero sobre a natureza do regime de Papa Doc e o Haiti. Agora, o Haiti volta às manchetes, novamente em circunstâncias desoladoras, e o que se espera é que a atenção do mundo dure bem mais do que na vez em que o país foi notícia por causa de Graham Greene e do ditador que ergueu a República do Pesadelo.