O mistério de Kirill, o patriarca russo que encontrou o papa Francisco em Cuba

Atualizado em 14 de fevereiro de 2016 às 12:15
Kirill e Francisco
Kirill e Francisco

Publicado no Unisinos:

 

A figura de Kirill, Patriarca de Moscou e de todas as Rússias, não é simples de enquadrar. Nem será fácil interpretar o histórico abraço com o Papa Francisco, o primeiro da história entre os chefes da Igreja católica e da Igreja ortodoxa russa. Duas personalidades muito diversas, como os dois ramos da cristandade separados pelo Grande Cisma de 1054, e que se reencontraram no aeroporto de Havana.

Kirill vem daquela que há 69 anos era Leningrado, e o seu nome era Vladimir Mikhailovich Gundjaev. O avô, entre os primeiros a ser encerrado no Lager das ilhas Solovetskij, ali transcorreu 30 anos; o ai foi condenado a três anos de trabalhos forçados na Kolyma. Ninguém jamais teria dito que de uma humilde família de religiosos dissidentes teria vindo um Patriarca que, tornado estreito aliado do poder a ponto de estabelecer residência própria no Kremlin, teria chegado a definir Vladimir Putin “um milagre de Deus”.

Quando aos 27 de janeiro de 2009 Kirill – então metropolita de Smolensk e Kaliningrado – foi eleito Patriarca, muitos o descreveram como um modernizador. Por própria conta entre os representantes das outras confissões,: subindo habilmente e com rapidez a escala hierárquica da Igreja ortodoxa soviética – aos 25 anos Kirill já representava a URSS no Concílio Mundial das Igrejas – o futuro Patriarca em 1989 se tornara responsável pelas Relações externas.

Até demasiado próximo aos católicos, segundo os conservadores. Muitos predisseram já então um possível encontro com o “Papa Rimskij”, o “Papa de Roma”. Na realidade, Kirill – contrário aliás a toda reforma da Igreja em sentido litúrgico ou doutrinal – havia aberto o conclave que o teria elegido atacando o proselitismo de católicos e protestantes em terra russa. E invocando uma “não interferência recíproca” nas relações entre Estado e Igreja, separação sancionada aliás pela Constituição russa: e, todavia os anos subsequentes verão Kirill sempre mais a braços com o Kremlin.

“O candidato do poder”, o intitulava nos dias do conclave o cotidiano Vedomosti. Um Patriarca-político, que, com o apoio de Putin, transformou a Igreja ortodoxa numa potente instituição e que, por sua vez, santifica a legitimidade de quem o poder terreno do presidente russo sempre mais necessita.

Nas pregas deste entrelaçamento se escondem as tantas controvérsias sobre Kirill, as vozes que o descreveram como agente da KGB – bem como do predecessor Alessio – e aquelas que o viram no centro de várias atividades financeiras da Igreja, incluindo a importação de tabaco e alcoólicos ou o escândalo “oil for food” [óleo para alimentação] no Iraque. E, graças a isto, riquíssimo: das propriedades imobiliárias aos iates (Kirill seria um apaixonado ‘scuba-diver’), até um “misterioso” relógio de 30 mil dólares no pulso do Patriarca numa fotografia: escandalosa a ponto de ter sido retocada.

Embora no fazê-lo se tenha esquecido de cancelar também o reflexo do relógio suíço sobre a mesa. Limitando-se às palavras do Patriarca, é clara a linha que se intersecciona com aquela do Kremlin: Kirill está em sintonia com Putin na defesa dos valores conservadores, em contraposição ao liberalismo do Ocidente, e da identidade nacional russa. Unidos para ambos serem garantes da estabilidade do País, a Igreja pilastra e parceira do Estado.

Sobre a crise ucraniana Kirill se enfileirou contra as políticas “anti-russas” da Igreja católica ucraniano-grega (de rito oriental, mas fiel a Roma). Considera “perigoso” o feminismo, os matrimônios no mesmo sexo, “um sinal do Apocalipse”, os abortos como uma interferência nos planos de Deus, e “obra de Satanás”, a punir a exibição das Pussy Riot que, na Catedral de Cristo Salvador em Moscou, cantando suplicaram a Virgem Maria de caçar Putin.

Até chegar à Síria, com Kirill, a abençoar a “guerra santa” lançada em outono passado “para proteger a Rússia do terrorismo: e, portanto, justa. A cristandade – disse o Patriarca – justifica as intervenções militares quando vão defender as pessoas, a sociedade e o Estado”.

“Eu venho aonde tu queres. Tu me chamas e eu venho” – lhes havia dito Franciscosegundo quanto o próprio Pontífice contou ao correspondente da Tass em 2014. “Ambos queremos encontrar-nos e queremos ir em frente”. Até onde? Além do gigantesco valor simbólico do encontro de hoje, como mudarão as relações entre católicos e ortodoxos após Cuba?

Uma viagem do Papa à Rússia parece ainda distante. E, no centro do colóquio – sublinham os russos – não será tanto a unidade das Igrejas: é pouco realista imaginar que Moscou ou o Vaticano estejam prontos às enormes concessões que seriam necessárias para reconciliar-se no plano teológico.

A reaproximar Kirill e Francisco tem sido antes as perseguições sofridas pelos cristãos, católicos e ortodoxos, no Oriente Médio e na África: “Onde o genocídio perpetrado pelos extremistas – explica Hilarion, o metropolita hoje à frente da política externa na Igreja ortodoxa russa – exige uma ação imediata e uma maior cooperação entre as Igrejas cristãs. Nesta trágica situação, devemos pôr de parte as divergências internas e unir os esforços para salvar a cristandade”.

Ainda uma vez, Kirill em linha com Putin, que na Síria procura romper o isolamento da Rússia no plano internacional. Não por nada muitos estão convencidos: o primeiro a abençoar o encontro de hoje em Havana tem sido o Kremlin.