O monitor acusado de abusar de crianças numa escola seria preso sem provas se fosse branco?

Atualizado em 24 de dezembro de 2014 às 16:43

acusação

 

Ontem, dia 23 de dezembro, mais uma vez um policial branco matou um jovem negro americano. Ocorreu em Berkeley, no estado do Missouri, que fica próximo ao epicentro Ferguson. Antônio Martin tinha 18 anos. Um protesto ocorreu logo depois, no posto de gasolina em que deu-se mais uma tragédia da crônica hostilidade racial. Policiais e manifestantes, obviamente, entraram em confronto.

O fato ocorre poucos dias depois que dois policiais foram mortos em Nova York supostamente em reação às mortes recentes de jovens negros por policiais brancos ocorridas nos Estados Unidos. Michael Brown em Ferguson, Tamir Rice em Cleveland (um menino de 12 que brincava com uma arma de plástico) e Eric Garner em Nova York são os casos mais em evidência e que serviram tanto de motes para gritos de guerra como para aumentar o fogo sob a panela de pressão.

A polícia novaiorquina agora sente-se sob ameaça e policiais deram as costas ao prefeito Bill de Blasio quando ele chegou ao hospital em que estavam os agentes atingidos no ataque praticado por Ismaaiyl Brinsley que escreveu em sua conta no Instagran pouco antes: “Eles levam um de nós… vamos levar dois deles”.

O nível de tensão vem aumentando sensivelmente nos EUA e podemos estar próximo de ver uma reprise dos conflitos ocorridos em Los Angeles nos anos 90 quando três policiais foram absolvidos por um júri. Eles haviam espancado o negro Rodney King. Em ciclos, a paciência das pessoas enche e transborda, quase sempre degenerando para a violência.

Os protestos sempre começam na região do assassinato ou abuso da autoridade, em seguida espalham-se e sabe-se lá como podem terminar. Naquele ano de 1992 um total de 53 pessoas morreram nos conflitos e o Corpo de Fuzileiros Navais e a Guarda Nacional da Califórnia precisaram ser acionados. Neste 2014 às portas de 2015 já temos indícios tenebrosos de que a situação esteja saindo do controle novamente.

Não considero possível declarar os EUA como o país mais racista do mundo ou mesmo estar entre os primeiros. Afinal, o racismo está em toda a parte. Haverá quem discorde e classifico como integrantes daquela parcela da sociedade que acredita que o racismo se dá apenas contra negros e que tenha sido só no período da escravidão. E é de certo modo surpreendente que estejamos assistindo a isso mesmo com os EUA ostentando um presidente negro.

É que independentemente de Obama e de outras histórias de sucesso individual, o racismo persiste nas estruturas das sociedades. O sucesso individual é apenas isso, uma exceção, um caso singular e ainda por cima utilizado com má-fé nos discursos sobre meritocracia. E nesse ponto Brasil e Estados Unidos são quase univitelinos.

Se não temos mais negros à venda no mercado nem amarrados e açoitados por chibatas, em compensação o racismo contra a população negra hoje é praticado de forma nem sempre tão velada (claro, aqueles não querem, não enxergam). Mas a distribuição de renda, o acesso à educação, a segregação geográfica estabelecida em guetos e periferias retratam um tecido injusto do qual dificilmente se escapa. Até o judiciário (ou principalmente ele) colabora para o cenário.

Antonio Bosco de Assis (para citar apenas um exemplo) é o monitor de uma escola infantil que, acusado de abusar sexualmente de três crianças, ficou preso desde maio e em 16 de dezembro foi condenado a 13 anos e 4 meses de prisão. O inquérito teve como base os depoimentos das meninas (que estão na faixa de 3 anos e identificaram-no como o ‘tio malvado’ sendo que poucos dias antes Antonio havia representado um personagem malvado numa peça teatral da escola), peritos não encontraram provas de contato sexual, não há outras provas como, por exemplo, imagens de câmeras da escola. O laudo psicológico feito com as 3 crianças diz que “há hipótese da possibilidade da ocorrência do abuso”. Hipótese da possibilidade? In dubio pró reu, certo, leitor? Só que não. Antonio Bosco de Assis é negro.

Não se está aqui declarando inocência de Antonio. Mas seja sincero, diante das circunstâncias expostas acima, você acredita que se Antonio fosse branco ele teria sido condenado? Talvez? Mas e se além de branco sua condição sócio-financeira fosse melhor? Claro que não. Estaria, no mínimo, aguardando em liberdade.

Pode-se afirmar com certeza absoluta que as investigações se aprofundaram como deveriam? Ou a cor da pele do acusado pesou na decisão?

Para quem acha que isso tudo não passa de vitimização nunca é demais lembrar que dos 30.000 homicídos de jovens que acontecem por ano, 77% das vítimas são negros. O caso de Antonio é clássico no Brasil assim como policiais brancos assassinos de negros não serem indiciados é uma praxe nos Estados Unidos. O judiciário perpetua a violência cometida nas ruas, garantindo que a igualdade dos direitos não seja preservada.

A justiça frequentemente tem sua idealizada e desejada cegueira contestada. É óbvio que ela não é cega. Mas enxerga apenas em preto e branco. E para ela, o preto é o errado.