O mundo vive uma “desglobalização”?

Atualizado em 7 de junho de 2015 às 10:30

desglobalização

Publicado na BBC Brasil.

 

Na década de 1990, qualquer debate político-econômico sempre envolvia uma “palavra mágica”: globalização.

O termo define as políticas seguidas por países e empresas dentro de uma realidade em que as multinacionais podiam mudar de país num piscar de olhos e o dinheiro cruzava fronteiras com a velocidade da internet.

 

Hoje, o cenário é outro. O comércio mundial e os investimentos internacionais sofrem uma retração. Nas principais economias, florescem discursos e práticas anti-imigração, e a Rodada de Doha, como são conhecidas as negociações promovidas pela Organização Mundial do Comércio (OMC) em prol da liberalização de negócios, já dura 13 anos, sem ser concluída.

Simon Evenett, especialista em comércio mundial da Universidade de Saint Gallen, na Suíça, defende que houve uma inegável mudança na tendência de globalização desde a crise financeira global de 2008.

 

“Isso afeta mais alguns setores do que outros, mas é evidente no comércio internacional e no setor financeiro, um símbolo da globalização”, afirma.

E este novo momento já tem inclusive um nome: “desglobalização”.

Portas fechadas

Na reunião dos países do G20 em 2009 em Londres, no Reino Unido, o grupo das maiores economias do mundo se comprometeu a “evitar a repetição de erros históricos”, conscientes do perigo que a recessão mundial representava para a globalização.

Foi uma referência clara a outra grande crise econômico-financeira dos últimos 90 anos, vivida na década de 30, quando países lançaram mão de políticas ultraprotecionistas, que, segundo seus críticos, agravaram ainda mais aqueles tempos difíceis.

 

O exemplo mais claro foi a lei Smoot-Hawley, nos Estados Unidos, que elevou impostos de importação para mais de 20 mil tipos de produtos estrangeiros.

“Ainda não foi adotada agora uma medida tão óbvia quanto esta, mas os governos vêm aplicando de forma discreta toda sorte de mecanismos para proteger sua produção nacional”, destaca Evenett.

Com a economia global abalada, o impacto sobre o comércio tem sido claro.

Se nos anos anteriores a 2008 cada aumento de 1% no PIB global era acompanhado por um aumento de 2% no comércio mundial, hoje esta proporção é de um para um, nos melhores casos.

 

Em janeiro, o comércio mundial caiu 1,6% e em fevereiro, 0,9%.

“Isso afeta os setores exportadores, que deixam de ser um motor de crescimento. Impacta ainda a criação de emprego e o nível dos salários, porque é nestes setores que estão os postos mais bem remunerados”, explica Evenett.

Política de imigração

As barreiras não são comerciais. O mal estar econômico após 2008 tem alterado o cenário político.

No centro do debate de muitos países desenvolvidos, está o mundo multicultural gerado pelos fluxos migratórios, outro símbolo da globalização.

Ao mesmo tempo, movimentos anti-imigração, como a Frente Nacional, na França, e o UKIP, no Reino Unido, vêm ganhando peso.

 

Um ponto-chave do futuro referendo do Reino Unido sobre sua permanência na União Europeia diz respeito a uma mudança defendida pelo primeiro-ministro britânico, David Cameron, em um princípio sagrado do bloco: a liberdade de circulação dos seus cidadãos entre os países-membros.

Ann Pettifor, da consultoria Prime Economics, avalia que o surgimento do partido Syriza, na Grécia, e dos nacionalistas do SNP, na Escócia, também são simbólicos deste questionamento da globalização.

“Também vimos isso na crise de 1930. As pessoas buscam refúgio em diferentes grupos políticos diante da instabilidade dos mercados e da incapacidade do governo de reagir”, destaca Pettifor.

Fluxo financeiro

Outro ícone do mundo globalizado é o livre fluxo financeiro.

Com milhões de transações sendo processadas por segundo pela internet nos dias de hoje, é fácil se esquecer de que, até o fim dos anos 1970, havia um forte controle sobre a movimentação de capital.

Os britânicos tinham, por exemplo, um limite de 50 libras (R$ 240) para levarem em viagens ao exterior.

 

Tanto a direita quanto a esquerda costumam não se lembrar que o pilar desta política foram os acordos de Bretton Woods, promovidos pelos Estados Unidos e o Reino Unido e que criaram o Fundo Monetário Internacional (FMI), como o organismo que supervisionaria o mundo criado no pós-guerra.

Hoje, não se vê um retorno àquele controle rígido, mas um comunicado do Banco Central britânico destaca que os bancos estão evitando realizar empréstimos internacionais.

‘Desglobalização’

Em um recente discurso, Kristin Forbes, integrante do Comitê de Política Monetária da entidade, afirmou que há uma “contração massiva dos fluxos financeiros globais”, que qualificou como “desglobalização bancária”.

Entre os exemplos deste fenômeno, estão o encerramento de operações bancárias em mais de 20 países da terceira maior instituição do tipo no mundo, o HSBC.

 

Muitos de seus empregados viveram em primeira-mão os efeitos desta retração da globalização de grandes bancos: entre 2011 e 2013, foram fechados mais de 30 mil postos de trabalho.

Este caminho também foi percorrido por outro gigante do setor, o Citi, que reduziu sua presença global para quase a metade de antes, passando a operar apenas em 24 países.

“Mesmo com a redução de empréstimos internacionais por bancos, para aumentar suas reservas, a arquitetura financeira mundial não se estabilizou, como mostra o aumento de US$ 57 bilhões na dívida global desde a crise”, diz Pettifor.

Pausa ou retração?

A pergunta é se estas tendências comerciais, financeiras e políticas marcam uma nova era ou se são um fenômeno transitório.

Nos últimos 25 anos, a unificação mundial gerada pela globalização desenhou um novo planeta.

A incorporação plena da China e da Índia – que, juntas, têm cerca de 40% da população do mundo -, bem como do Leste Europeu, são claros sinais do avanço da globalização.

 

Enquanto a Rodada de Doha pela liberalização segue paralisada, os acordos comerciais têm se multiplicado, com dois destaques: entre os EUA e a União Europeia, que representam 40% da economia mundial, e entre 15 países do Pacífico na Ásia e nas Américas.

A tecnologia também está do lado da globalização, levando mais à ruptura de fronteiras do que a criação de obstáculos.

Em um comunicado recente, o chefe de pesquisas de comércio internacional do banco holandês ING, Raoul Leering, apontou fenômenos econômicos, como a crise na Europa, como a causa da atual desaceleração, mas destacou que a globalização seguirá em frente.

“Não veremos se repetir o ‘boom’ dos anos 1990 e do princípio deste século, mas a integração econômica prosseguirá. Ainda falta uma integração entre países emergentes, como China, Índia e Filipinas, que têm baixos níveis de investimentos estrangeiros em comparação com os países desenvolvidos”, avalia.

 

“A fragilidade da economia europeia foi um fator desta desaceleração transitória.”

Segundo Pettifor, é importante diferenciar a globalização comercial e financeira.

“Não se pode subestimar o poder das forças que têm contribuído para a globalização. Mas é preciso distinguir a globalização comercial, que traz benefícios, da financeira, que gera instabilidade e uma forte reação social e política, que seguirá presente se não for controlada sua volatilidade.”