O primeiro assédio que sofri. Por Nathalí Macedo

Atualizado em 30 de outubro de 2015 às 17:01
A autora
A autora

Eu devia ter uns doze anos. Onze, talvez. Ou treze. Dezesseis. E dezoito… Não importa muito. Na minha vida – e na vida das mulheres, de modo mais geral do que gostaríamos – o assédio é corriqueiro, cotidiano, quase banal para quem não é uma vítima. Acontece todo dia.

Lembro-me, portanto, de dezenas de assédios. Do primeiro, na quinta série. Do derradeiro – e pior de todos – no primeiro ano de faculdade. E do último, ontem, quando saí de casa para comprar frutas. De todos que provavelmente ainda acontecerão, hoje mesmo, quando eu passar com uma saia curta.

Deste primeiro, lembro agora como se tivesse acabado de acontecer. Posso até ouvir o murmurinho habitual dos corredores do colégio. Lembro-me do nome dele, dos olhos maliciosos dele, da expressão nojenta dele.

Era um garoto mais velho do ensino médio. Eu, uma menina de onze anos no ginásio. Era intervalo nos corredores lotados. Passamos lado a lado e ele não se contentou em me olhar como se estivesse me despindo (como fazia habitualmente). Aproveitou a proximidade e tocou minha cintura com alguma força, emitindo um som que se parecia com um gemido, acompanhado pelo mais intragável “gostosa”.

Gostosa, eu? Com onze anos, meus seios eram apenas dois mamilos lisos. Era magrela e tinha expressões infantis – o que não significava nada para a excitação doentia do garoto.

Os amigos dele riram do meu susto. As minhas amigas também. A partir de então, o assédio estava oficialmente banalizado na minha cabeça. “Os homens são assim mesmo”.

Depois disso, fui assediada algumas dezenas de vezes, como a maioria das mulheres que conheço. O braço puxado na balada, o beijo forçado no carnaval, o “elogio” malicioso no trabalho.

Aos dezoito anos, o assédio bateu novamente à minha porta, de uma maneira mais agressiva do que até então. Era um amigo da família e considerava-se o meu ‘padrinho’. Tinha uns sessenta anos e netos da minha idade e não morava na mesma cidade que eu.

Eu já notara os olhares, as frases soltas maliciosas, os convites inusitados, os presentes desconcertantes… Mas isso só podia ser coisa da minha cabeça. Afinal, é sempre coisa da cabeça das mulheres e, aos dezoito, eu ainda acreditava cegamente nisso.

Num dia qualquer, me telefonou: “Estou passando pela sua cidade, quero te ver! Vou passar no seu trabalho pra te dar um abraço.” Ok.

Desci as escadas e fui encontrá-lo na entrada. Conversamos rapidamente até que ele apontou para algum lugar (que até hoje não sei qual): Olha que mulher parecida com você! – eu não estava vendo. “Venha mais perto, fique aqui na minha frente que você vai ver.” Puxou-me “gentilmente” para sua frente e encostou o pau duro em mim. Me encoxou, descaradamente, no meio da rua – já que pela primeira vez me via longe dos olhos dos meus pais – e passou um dos braços pela minha cintura.

Aquilo fez com que, pela primeira vez, eu me desse conta: não era coisa da minha cabeça. Era um assédio. E, mesmo cônscia do absurdo que acabara de acontecer, eu não fiz um escândalo, como provavelmente deveria. Não gritei, não corri, não contei aos meus pais. Só me desvencilhei da proximidade desnecessária, inventei uma desculpa qualquer e voltei ao trabalho – para nunca mais atendê-lo ou encontrá-lo.

A cada vez que me lembro do episódio sinto um arrependimento gigantesco por não tê-lo empurrado, gritado, reagido. Hoje eu sei que reagir é preciso. Que nós não estamos loucas se nos recusamos a aceitar nossos corpos sendo invadidos por estranhos e que não importa quantos acreditem que nossa reação é desmedida – nós temos esse direito.

Minha luta é para que as meninas de dezoito anos da próxima geração gritem quando forem descaradamente encoxadas – na balada, no ônibus ou no meio da rua. Que não temam represálias, que não se perguntem se realmente se trata de um assédio – porque se você se sente invadida, sim, se trata de um assédio.

Façamos um escândalo a cada encoxada. Cuspamos no chão a cada piada invasiva. Denunciem, gritem, reajam. Não tenham medo de parecer loucas. Louco é banalizar o assédio.