O que eu testemunhei no Iraque

Atualizado em 20 de março de 2013 às 19:00

Um correspondente da BBC relata suas impressões, no aniversário de dez anos de invasão americana.

O Iraque sob bombas americanas
O Iraque sob bombas americanas

O texto abaixo foi publicado, originalmente, no site da BBC. O autor, John Simpson, editor de Mundo da BBC, cobriu a guerra.

 

Na década passada, passei mais de um ano da minha vida no Iraque.

Vi de perto como o país foi marcado pela violência, desde o início. Durante a invasão, um piloto dos EUA Marinha descuidado jogou uma bomba de meia tonelada em um grupo de americanos curdos que minha equipe e eu acompanhávamos. Dezoito pessoas morreram, muitas delas queimadas até a morte. Não houve investigação depois, e ninguém foi punido.

Vi como o tumulto que se seguiu à invasão se transformou em uma rebelião aberta e depois se tornou uma guerra civil entre sunitas e xiitas enquanto as forças americanas e britânicas observavam impotentes.

Em 2006 e 2007, já dava para ver que as forças dos EUA podiam ser derrotadas. Um clima de pessimismo desceu sobre o comando dos EUA. O poder americano no mundo parecia já haver fortemente diminuído.

Em seguida, chegou um novo comandante, o general David Petraeus. Toda a estratégia mudou. Como resultado, os EUA foram capazes de se retirar sem humilhação adicional. Petraeus mais tarde se tornou chefe da CIA, até que um escândalo destruiu sua carreira no ano passado.

Uma vez que as forças estrangeiras partiram, o Iraque foi  deixado por conta própria. Os políticos iraquianos eleitos começaram a estabelecer a sua autoridade sobre o país.

A situação de segurança melhorou significativamente, embora a rotina no país ainda fosse ocasionalmente perigosa.

Ainda assim, o governo de maioria xiita não fez o suficiente para conquistar a adesão a minoria sunita. Os curdos, independentes e cada vez mais ricos, demonstram pouco interesse em fazer parte do Iraque como um todo.

A maioria dos iraquianos com quem você fala está profundamente pessimista. E ainda assim, por mais estranho que pareça, o futuro do Iraque está começando a parecer melhor –  se for dado um pouco de paz à população.

Os iraquianos estão divididos sobre o assunto sobre a invasão. Xiitas e curdos, os grandes beneficiários da derrubada de Saddam, tendem a aprovar. A maioria dos sunitas, os grandes perdedores, não.

A invasão certamente trouxe a queda de um tirano que governou através de puro terror. Uma vez em Bagdá falei com um homem que foi condenado à morte por banho de ácido por escrever um número de telefone em uma nota com o retrato de Saddam Hussein. Até mesmo seus executores tiveram pena dele, e só o mergulharam no ácido por um momento. Mas suas costas ainda estão terrivelmente marcadas.

Poucas das premissas da invasão se revelaram corretas. O Iraque não se tornou um grande aliado dos EUA no Oriente Médio, como a administração Bush acreditava. Pelo contrário, o Iraque hoje está mais perto do Irã do que dos americanos.

Tempouco o Iraque se tornou um grande fornecedor de petróleo para os americanos. Companhias petrolíferas americanas têm importantes contratos no Iraque, mas acontece o mesmo com empresas britânicas, russas e chinesas.

Duas companhias americanas se deram particularmente bem com a invasão: a Halliburton, com a qual o antigo vice-presidente Dick Cheney tinha conexões, e a empresa de segurança Blackwater, cuja reputação era tão ruim que ela mudou de nome e se chama agora Academi.

Há muito sabemos, é claro, que Saddam Hussein que não era a ameaça estratégica que britânico e americanos diziam ser em 2002 e 2003. Um líder político americano diz que a administração Bush assegurou-lhe em particular que os mísseis de Saddam poderiam atingir a costa leste dos EUA. O governo britânico na época afirmava que mísseis iraquianos eram capazes de atingir bases inglesas no Chipre poderiam ser acionados em 45 minutos.

Na verdade, o relatório Duelfer  mostrou em 2004 que Saddam Hussein suspendeu todas as pesquisas de armas nucleares em 1991, e em 1995 também interrompeu os estudos sobre armas químicas e biológicas.

A maioria das pessoas nunca realmente entendeu o que foi a invasão. Uma pesquisa de opinião do jornal Washington Post em 2004 mostrou que 69% dos americanos achavam que Saddam Hussein estava por trás dos ataques de 11 de Setembro.

Olhando para trás na última década, não posso me livrar de muitas imagens perturbadoras.

Na cidade de Fallujah, duramente atingida pelas tropas americanas, vi em 2004 duas crianças sentadas em silêncio em seu cercadinho, mal se movendo. Eram gêmeos. Assim como um número elevado de crianças na cidade, nasceram com defeitos.

Crianças estão entre as vítimas
Crianças estão entre as vítimas

Não sendo um especialista em armamento, não posso dizer se isso foi o resultado de alguma arma especial usada pelos americanos. Mas eu gostaria de poder esquecer a imagem dos gêmeos, indefesos, deformados e com danos cerebrais.

Os médicos locais afirmam que os defeitos congênitos subiram em Fallujah depois da guerra.

Uma vez sentei e ouvi a história de uma humilde família de Bagdá cujo provedor foi sequestrado por uma gangue local. A família vendeu tudo para levantar o dinheiro exigido.

A quadrilha exigiu mais dinheiro. Com esforços sobre-humanos, e arruinando-se, a família juntou mais dinheiro. Tudo o que recebeu em troca foi o corpo morto do sequestrado. Ele fora assassinado poucos minutos depois de ser capturado.

Acima de tudo, nunca esqueço meu jovem tradutor, Kamaran, deitado, seus pés quase arrancados por uma bomba americana que caíra erroneamente sobre nós, o sangue de sua vida escorrendo para fora dele. “Sei que é perigoso”, ele disse para mim alguns dias antes, “mas eu realmente quero trabalhar com você.”

Nem um dia se passou nestes dez anos em que eu não tivesse pensado nele.